Julius
Evola
Traduzido e adaptado do texto italiano original por Marcelo D. Prati
Um
dos maiores preconceitos que, no dia de hoje impedem, de maior maneira, a
compreensão do mundo antigo, ou daquelas civilizações que, até agora conservam
traços que são irredutíveis às formas da civilização “moderna”, é aquela de
supor que o homem sempre possuiu as mesmas formas de conhecimento com as mesmas
faculdades que hoje se encontram na maioria das pessoas.
Tomemos
a fantasia ou a imaginação, por exemplo. Hoje cremos que essa, no estado de
vigília, na maior parte dos casos, é uma faculdade puramente subjetiva: essa
elabora formas ausentes de qualquer relação com a “realidade”, tanto que hoje,
dizer fantástico e dizer irreal ou arbitrário dá tudo no mesmo. Esse tipo de julgamento
se estende a grande parte das expressões da civilização pré-moderna, baseado na
importância que, neles, nas fábulas, mitos, símbolos, etc., estava a faculdade
fantástica. Não apenas isso: o mesmo se pensa do que concerne a certos
fenômenos supernormais ou extranormais que, ainda hoje, aqui e ali, como visões
ou aparições, ocorrem esporadicamente em alguns indivíduos, em circunstâncias
especiais.
Esse
é um caso específico no qual um pressuposto arbitrário conduz a gravíssimas
incompreensões. A fantasia seria sempre
produtora de formas irreais que habitam o ar? Ainda se referindo ao homem de
hoje, isso é discutível. Tomemos o fenômeno do sonho. Nem tudo no sonho é
fantasia irreal ou a tradução de sensações corpóreas obscuras e de impulsos
reprimidos. Em alguns casos, o sonho é a tradução simbólica e, apenas como tal,
fantástica, de uma percepção que, em si, é real, objetiva. Por exemplo, um
adormecido pode perceber confusamente o barulho de uma cadeira que cai e
vivê-lo simbolicamente na imagem de um sonho com um terremoto ou um golpe de
canhão. Essa imagem, em si, é fantástica, mas como símbolo não é irreal: sendo
arbitrária unicamente na maneira em que a percepção real é traduzida pelo
adormecido. Aquele que estivesse desperto e pudesse perceber simultaneamente o
barulho físico e a imagem vista pelo adormecido, reconheceria claramente a
correspondência, que é o fato que a fantasia aqui não foi criada do nada, mas traduziu
através de uma imagem simbólica subjetiva, algo de objetivo.
Isso
ocorre porque no estado do sono e do sonho, a fantasia se encontra em um estado
diferente que quando se está desperto: ela é, numa certa medida, livre e ativa,
não é restrita, como na vida no estado de vigília, pelos sentidos e pelo
controle do cérebro. Agora, sobre semelhante estado da fantasia, hoje
encontrado apenas no sono, é necessário
supor que se encontrava fundamentalmente presente de forma quase ordinária e
normal na mesma vida de vigília do homem antigo. E essa é a chave para
entender tantos aspectos mal compreendidos de suas civilizações, de suas
tradições e de seus mitos.
Naturalmente,
aqui se precisa admitir outra premissa, vale dizer que a natureza possui um
lado interno e um lado externo, com os fenômenos físicos que chegamos a
conhecer através dos sentidos físicos correspondendo à exterioridade, ao modo
exterior e físico de se mostrar de forças mais sutis, estando em primeiro
plano, como a psique está à sua expressão corpórea. Agora, no homem antigo,
dado a mencionada diferença na qualificação de suas faculdades fantásticas, era
possível uma percepção simbólica de tais forças. As forças da natureza, de
igual modo que agindo sobre os órgãos dos sentidos, produzem uma percepção
dotada de valores de compreensão objetiva e esses, por sua vez, agindo sobre a
fantasia do homem antigo, produziam uma visão, ou imagem, ou representação
fantástica que possuía igualmente um valor de compreensão objetiva sui generis. Surgiam então formas
simbólicas que traduziam figurativamente um contato com o aspecto interno das
forças da natureza. O arbitrário aqui se limitava à expressão, à imagem porque
era símbolo: mas tudo isso não surgia nem do nada e nem do puro arbítrio: como
no mencionado caso do sonho, uma percepção real, objetiva, contudo, confusa,
constituía sua base e sua causa. E aquele que tivesse a faculdade de ver o sentido superior – esse é o tipo
antigo de Sábio, de Vidente, de iniciado – poderia facilmente captar
diretamente o sentido daquilo que se ocultava por detrás de tais revestimentos
fantásticos e simbólicos assim como, no exemplo adotado, a pessoa desperta que
visse o sonho com o terremoto ou o tiro de canhão se daria conta imediatamente
de ser aquele sonho, a tradução simbólico-fantástica do barulho, obscuramente
percebido, da queda da cadeira.
O
ponto crucial aqui consiste em reconhecer o erro da chamada teoria
naturalística, segundo a qual, tudo aquilo que é mito, lenda, fantasia,
simbologia do homem antigo, não passava da tradução fantástica daqueles puros
fenômenos naturais físicos que hoje são comumente conhecidos com os sentidos
corpóreos. Não: a tradução fantástica tomava, em vez disso, os movimentos
daquilo que está por detrás dos
fenômenos naturais físicos, ou seja, de uma realidade que, embora seja tão
positiva e objetiva quanto esses, hoje é dogmaticamente negada por aquilo que
se concordou em chamar de ciência, pelo fato de que a faculdade de fazer
contato com tal realidade, faculdade normal no homem das idades arcaicas, hoje
está perdida e não sobrevive senão esporadicamente e confusamente.
Segundo
esse ponto de vista tradicional, o conhecimento da natureza própria aos
modernos, ou seja, aquele científico-experimental, não é, portanto, em nada, a
superação daquela sua fase infantil e fantástica, que estaria a mitologia e a
simbologia dos antigos. Aquilo que o homem antigo percebia, media e às vezes
até mesmo via com a sua diferente
sensibilidade fantástica, se referia na
verdade a uma ordem diversa: não eram devaneios, nem poesia pré-científica,
mas um dado imediato de uma outra experiência, que se interpunha
espontaneamente entre a trama daqueles que os sentidos físicos se revelam quase
a formá-la por completo e de maneira integral.
Considerando
assim, tudo aquilo que no mundo antigo é patrimônio, digamos assim, do fantástico,
não é em nada um “estado superado”. Como uma ganga de aparência desprezível,
oculta em um metal precioso, assim aquele patrimônio contém oculto em estado
latente, um conhecimento superior, absolutamente irredutível a uma medida que,
tanto hoje ou em qualquer momento do futuro, aos modernos convenha chamar de “ciência”,
tratando-se então aqui de uma diferença de qualidade e de plano. Superar o
preconceito já citado e começar a pressentir tais horizontes é uma condição
necessária, de fato, para que o estudo de nossas origens e do nosso passado não
se reduza a um estudo de cadáveres e sua exumação não termine, por muitas
vezes, de mera retórica.
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