André Otávio Assis
Muniz
A
vida é repleta de ironias. É realmente incrível como a maioria das pessoas não
consegue enxergá-las. O presente texto não é sobre a ironia em si, mas sobre algumas
ironias que parecem passar despercebidas para alguns maçons.
Convido
o leitor a me acompanhar em alguns raciocínios simples que culminarão na tese
central que sustento nesse ensaio. Iniciemos pois.
1 – O Espírito de torcida ou de seita
Qualquer
pessoa civilizada, ao se deparar com as cenas grotescas de agressão entre
torcidas organizadas de futebol, sente uma repulsa natural, um misto de
estupefação com revolta diante de tamanha ignorância e incivilidade. O que
essas pessoas estão defendendo? Um clube que nem as conhece? Uma cor de
camiseta? Um desenho com o brasão do clube desportivo? Essencialmente, o que
muda de um clube para o outro? Não são todos praticantes do mesmo esporte? Não
têm essas pessoas muito mais em comum umas com as outras do que diferenças?
Da
mesma maneira, agressões verbais, xingamentos, ataques pessoais, sejam físicos
ou psicológicos, motivados por motivos religiosos e ideológicos, são a antítese
da tolerância e da convivência entre povos civilizados. Nenhuma pessoa madura,
com alguma educação e reflexão, se tornará inimiga de outra pelo fato de ser
judia, cristã, muçulmana, ateia, budista, hindu, sikh, ou seja lá de que
religião for. Aliás, em geral, o contato com pessoas de religiões e culturas
diferentes é uma excelente oportunidade para aprender. Quantas e quantas vezes
ouvimos críticas ao fanatismo de algum religioso que ataca outras pessoas por
desposarem ideologias diversas da sua? Quantas violências vemos perpetradas por
diferenças entre religiões e culturas? Não é isso chocante para nós? Sem dúvida
que sim.
2 - O Espírito Maçônico
A
Maçonaria sempre desposou uma visão tolerante e universalista. Sempre advogou a
liberdade de consciência e de expressão, sempre esteve contra as imposições,
contra as ditaduras ou os amordaçamentos ideológicos. Esse espírito descrito
acima, de torcida, de seita, de facções galerianas amotinadas, é o oposto do
tipo de civilização defendido pela Maçonaria.
Seguindo
um tipo de ideologia inspirada na tolerância dos filósofos e sábios do Mundo Antigo,
que viam as diversas ideologias religiosas e políticas como uma expressão
parcial da Verdade e sustentavam que a Verdade Metafísica estava para além das
formas e particularidades culturais ou temporais, os maçons foram acusados por
grupos intolerantes de “relativistas”, de “tramar contra a Igreja”, de
“conspiradores, “satânicos”, “liberais” entre outras coisas.
3 – Começam as ironias
No
Brasil, por exemplo, no início da implantação das Igrejas Evangélicas, a
Maçonaria foi a principal defensora da liberdade de culto. Alguns dos primeiros
cultos evangélicos no Brasil, pasme o leitor, ocorreram dentro de templos
maçônicos e eram os maçons que protegiam pastores, depósitos de Bíblias da
tradução de João Ferreira de Almeida (tradução evangélica condenada por Roma) e
a paz dos evangélicos que iam congregar, contra a fúria de alguns párocos
católicos romanos e irmandades que queriam, a todo custo, impedir a implantação
dessas igrejas em território nacional. Hoje, por conta de uma dessas “ironias
do destino”, há uma imensa quantidade de igrejas evangélicas a acusar os maçons
de “satanistas”, “idólatras”, “filhos das trevas” etc. A principal das
acusações também tem lá o seu “quê” de irônico. Dizem essas igrejas que nada
que seja “da Luz” precisa ser secreto. Que só as obras “das Trevas” necessitam
ser feitas a portas fechadas. Ignoram esses sectários que o cristianismo, até o
ano de 313, era clandestino e só celebrado secretamente. As igrejas se reuniam
em catacumbas (e nem por isso “adoravam os mortos” ou os “espíritos das
trevas”), os cristãos não se declaravam publicamente como cristãos e os seus
locais de culto eram conhecidos apenas pelos membros da comunidade. Graças a
isso, fizeram diversas acusações a eles. Dentre elas, que praticavam
“antropofagia”, que sacrificavam crianças, que bebiam sangue, que adoravam um
morto-vivo judeu. Quanta coincidência não?
4 - Ironias intra-muros
Apesar
de haver, por assim dizer, um conteúdo e um simbolismo base geral, já há muito
tempo atrás, a Maçonaria começou a ser praticada seguindo padrões e formas
diferentes. Cada região, mais ou menos extensa, acabava por ter o seu próprio
padrão e suas particularidades, influenciados por pensadores, intérpretes,
místicos etc.
Como
é óbvio supor, padrões, costumes, formas e usos acabaram por se condensar em
sistemas maçônicos chamados de “Ritos”. Cada Rito dá enfoque em um determinado
conjunto de ensinamentos maçônicos e esses ensinamentos, por sua vez, são
expressos em seus costumes e símbolos. Por uma necessidade organizacional,
esses Ritos passaram a se tornar progressivamente institucionalizados e, para
tanto, começaram a surgir patentes, autorizações, regulamentações etc., para a
preservação das tradições recebidas. Aí começa o enguiço. Aquilo que,
fundamentalmente, servia para unir os Irmãos em torno de um ideal comum, se
torna uma causa de raivosas dissensões.
Já
em pleno século XVIII, Fichte escreveu:
“Por outro lado, a sociedade (Maçonaria) se divide internamente e cessando toda unidade, os Irmãos separam-se em
seitas, que chamam sistemas; acusam-se uns aos outros
de heresia, excomungam-se e repetem o jogo de uma igreja que pretende só ela tornar felizes os homens. O
venerável Servati pergunta: “E se eu quisesse tornar-me maçom, onde estão os verdadeiros mestres?”. E em seu
volumoso livro não sabe dar a resposta.
Entrementes, os maçons de todas as cores e distintivos respondem uníssonos: “Em nenhuma, em nenhuma outra
parte a não ser conosco.
Ora, qual é a
consequência? O profano, que antes tinha respeito ao menos pelo nome de IRMÃO, acha agora ridículos os maçons
que se perseguem mutuamente e se acusam de heresia.
E recai sobre a Maçonaria algo muito pior que todas as perseguições: o frio desprezo e a derrisão da gente
culta.” (Philosophie der Maurerei, Briefe an Konstant – Filosofia da Maçonaria, Cartas a
Konstant. Tradução de João Nery Guimarães)
Esses
dias atrás, depois de um evento maçônico, comecei a receber prints de uma outra
instituição que nos chamava de “mentirosos”, “escroques”, “bandidos”,
“falsificadores”, “perjuros”, “estelionatários” e comparava nosso grupo a uma
“boneca inflável”. Outra publicação, desse mesmo grupo, nos comparava com uma
nota de dinheiro falsa. Isso foi escrito por alguém que se denomina “Irmão” e
que, em sua instituição, pratica algo muito semelhante ao que praticamos na
nossa. Foi publicado em uma página de instituição que se diz maçônica, em plena
internet, aberto, para todo mundo ver. E todo mundo viu, comentou e “printou”.
Isso, fora da Maçonaria, é pura e simplesmente, crime de calúnia (imputar a
alguém prática tida como crime, ou seja “falsificadores” e “estelionatários”) e
de difamação (tornar conhecida uma injúria, algo que afete a honra e a moral
subjetiva de alguém, no caso “escroques”, “bandidos” e “perjuros”), e se
resolve com denúncia, processo criminal e civil (por dano moral e material).
Pensando
agora, por outro ângulo, a questão seria até relativamente simples se fosse
resumida a uma questão legal. No entanto, essas manifestações demonstram um
discurso de ódio, um espírito de seita, de torcida, de facção que adere a um
líder ou a um discurso e se torna cega para qualquer argumento em contrário. É
uma ironia que isso seja praticado dentro de uma instituição que prega
tolerância, respeito e liberdade de consciência, não é? O que essas pessoas,
que praticam esse tipo de ação, aprenderam com tantos Graus Maçônicos? A ser
mais incivilizadas, grosseiras e descorteses? A se inflar com pretensão de
serem melhores que as outras por estarem na instituição X, Y ou Z? O que estão
defendendo? Seu “clube”? A cor do seu
avental?
A
grosseria de alguns “Irmãos” para com seus semelhantes é chocante. Revestidos
com seus paramentos de “autoridade” se tornam detestavelmente arrogantes,
pretensiosos de um grande “poder” que só existe em sua imaginação.
Em
um lugar me disseram que se eu não preenchesse tal ficha eu não “existia” para
uma determinada Ordem Inglesa. E isso em um tom incrivelmente arrogante. Sério
mesmo? Eu sou reduzido a esse papelzinho aí? É essa a “moral”? Reduzir pessoas
e suas particularidades a um bolo de fichas? Não preenchi e não preencherei.
Prefiro não existir para quem pensa dessa forma.
Uns
tentam diminuir o Rito que os outros praticam, outros desmerecem a instituição
X ou Y, e outros, ainda, tentam parasitar o trabalho alheio enquanto louvam a
si próprios. E, dessa forma, o espírito de seita, a “torcida organizada do
avental” vai se formando, sempre em nome de uma grande e valiosa “fraternidade”
e da “moral e bons costumes”.
Cada
um é livre para aderir ao que quiser, ao Rito que quiser, à instituição que
quiser sem ter que, para isso, xingar os outros ritos, as outras instituições,
ofender pessoas, acusá-las de crimes ou se tornar uma besta selvagem a guinchar
e dar coices e patadas.
Sem
aprender a lição mínima de educação e civilidade, ainda que se tenham colados
todos os Graus Maçônicos possíveis e imagináveis, o indivíduo não passa de um
selvagem, um imbecil grosseiro e pretensioso a exibir títulos vazios, medalhas
e aventais que, em sua fantasia, ele acredita serem substitutos suficientes
para os valores reais que lhe faltam.
Incrível
como o “óbvio ululante”, nas palavras caras a Nelson Rodrigues, é tão difícil
de enxergar.
Pensemos
por algum tempo nisso.
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