Traduzido do inglês por Marcelo D. Prati
Revisado por André O.A. Muniz
Extraído de
“Grundisse” por Julius Evola
É talvez apropriado destacar os mal-entendidos no corrente momento em
alguns círculos radicais, que creem residir a solução na direção do neo-paganismo.
Tais mal-entendidos já são visíveis no uso dos termos “pagão” e “paganismo”. Eu
mesmo, tendo usado tais expressões como slogans num livro que publiquei na
Itália em 1928 e na Alemanha em 1932, tenho sentido sincero arrependimento.
Certamente a palavra para pagão ou bárbaro, aparece em alguns antigos
escritos em latim, como Lívio sem nenhuma conotação especialmente negativa. Mas
isso não altera o fato de que com a chegada da nova fé, a palavra paganus se
tornou decididamente uma expressão depreciativa, tal como foi usada pelos
primeiros apologetas cristãos. Ela deriva de pagus, significando um
pequeno povoado ou vilarejo, assim, paganus se refere ao modo de pensar
do camponês: sem cultura, primitivo e supersticioso. De modo a promover e
glorificar a nova fé, os apologetas tinham o mau hábito de elevarem-se através
do rebaixamento das demais crenças. Ocorria uma constante, consciente e
sistemática, depreciação e deturpação de quase todas as tradições mais antigas,
doutrinas e religiões, que eram agrupadas numa desdenhosa colcha de retalhos -
chamada de paganismo ou tribalismo. Com esse fim, os apologetas obviamente
fizeram um esforço premeditado para ressaltar tais aspectos das religiões e
tradições pré-cristãs que estavam em falta de qualquer caráter normal ou
primordial, mas que eram claramente formas que já haviam caído em degradação.
Tal procedimento polêmico guia, particularmente, à caracterização de tudo que
precedia ao Cristianismo, e que seria portanto não-Cristão, como
necessariamente anti-Cristão.
Pode-se considerar então que esse “paganismo” é um conceito
fundamentalmente tendencioso e artificial que pouco corresponde à realidade
histórica da qual o mundo pré-cristão fazia parte, longe dos novos e decadentes
elementos e aspectos que derivaram de restos degenerados de culturas mais
antigas.
Uma vez que tenhamos esclarecido tal questão, chegamos hoje a uma
constatação paradoxal: a de que esse paganismo imaginário, que nunca existiu,
mas que foi inventado pelos apologetas cristãos, está agora servindo de ponto
de partida para certos círculos que se denominam pagãos e corre o risco de pela
primeira vez na história vir a se tornar uma realidade - nem mais nem menos que
isso.
Quais são os principais traços do panorama pagão atual, como os próprios
apologetas creem e os declaram ser? O primeiro de todos é o aprisionamento à
Natureza. Todo aspecto transcendente é completamente desconhecido para a visão
pagã da vida: ela permanece trancada numa mistura de Espírito e Natureza, numa
unidade ambígua de Corpo e Alma. Não há nada para sua religião além de uma
supersticiosa deificação de fenômenos naturais, ou de energias tribais
promovidas ao status de deuses menores. Fora disso surge, primeiro de
tudo, um tipo de particularismo atado ao sangue ou ao território. Em seguida
vem a rejeição dos valores de personalidade e liberdade e uma condição de
inocência que é meramente aquela do homem natural, ainda não desperto para
qualquer chamado verdadeiramente supranatural. Além dessa inocência, não há
qualquer carência de inibição, “pecado” e prazer de pecar. Em outros domínios
não há nada além de superstição, ou uma puramente profana cultura de
materialismo e fatalismo. É pensado que apenas a chegada da cristandade
(ignorando certos precursores que são descartados como insignificantes) é que
permitiu o avanço da liberdade do mundo supranatural, permitindo a entrada da
graça e personalidade, em contraste com as crenças fatalistas e atadas à
natureza atribuídas ao “paganismo”, trazendo com isso o ideal católico (em seu
etimológico senso de universalidade) e um dualismo sadio, que fez tornou
possível o subjugar da Natureza por uma lei superior e para o “Espírito” o
triunfar sobre a lei da carne, sangue e falsos deuses.
Essas são as características principais da noção comum de paganismo, ou
seja, de tudo aquilo que não implica numa visão de mundo especificamente
cristã. Qualquer um que possua alguma familiaridade com história cultural e
religiosa, mesmo que elementar, pode ver o quão incorreta e unilateral é tal
atitude. Além disso, entre os primeiros pais da igreja, há frequentemente
sinais de uma compreensão superior dos símbolos, doutrinas e religiões das
culturas precedentes. Aqui daremos apenas uma amostra.
O que mais distinguiu o mundo pré-cristão, em todas as suas formas
normais, não foi a divinização supersticiosa da natureza, mas uma compreensão
simbólica dela, em virtude disso (como tenho frequentemente enfatizado) todo
fenômeno e todo evento se mostra como a revelação sensível de um mundo suprassensível.
A compreensão pagã do mundo e do homem era essencialmente marcada pelo sacro
simbolismo.
Além disso, o modo de vida pagão absolutamente não era o de um inocente
irracional, nem um abandono natural das paixões, mesmo que certas formas disso
fossem obviamente degeneradas. Já se estava ciente de um dualismo sadio, que se
reflete em sua religião universal ou concepções metafísicas. Aqui podemos
mencionar a dualista religião-guerreira dos ancestrais arianos iranianos, já
discutidos e familiares a todos; a antítese helenística entre as “duas
naturezas”, entre o mundo e o submundo, ou a nórdica entre a raça dos Ases e os
seres elementares; e por último, os indo-arianos e o contraste entre o samsara,
o “fluxo das formas” e a mukti, “liberação” e “perfeição”.
Nisso, todos as grandes culturas pré-cristãs compartilharam o empenho
por uma libertação supranatural, ou seja, por uma perfeição metafísica da
personalidade e todas elas reconheciam Mistérios e iniciações. Já tenho
destacado que os Mistérios frequentemente significam a reconquista de um estado
primordial, a espiritualidade das raças solares, hiperbóreas, na fundação de
uma tradição e de um conhecimento que foi escondido através de sigilo e
exclusividade da contaminação de um meio já em decadência. Também já vimos que
no Oriente, a qualidade de um ariano já era associada com um “segundo
nascimento” alcançado através da iniciação. Quanto a inocência natural, bem
como o culto pagão ao corpo, isso é um conto de fadas sem evidências mesmo
entre os selvagens, apesar da falta de diferenciação interna já mencionada em
conexão com as raças “próximas da natureza”, tais pessoas inibem e restringem
suas vidas através de incontáveis tabus de uma maneira muitas vezes mais
estrita do que a moralidade das assim chamadas “religiões positivas”. E quanto
ao que parece uma visão superficial que corporifica tal “inocência”, a saber, o
ideal clássico, de que não havia um culto ao corpo: isso não pertence a esse
lado da dualidade corpo-espírito, mas a um outro lado. Como já afirmado, o
ideal clássico é aquele onde o Espírito é tão dominante que sob certas
condições espirituais favoráveis, ele molda o Corpo e a Alma à sua própria
imagem e desse modo atinge uma perfeita harmonia entre o interior e o exterior.
Por último, existe uma aspiração para além do particularismo encontrado
em todo lugar no mundo “pagão”, que foi graças aos agrupamentos imperiais na
fase ascendente das raças derivadas dos nórdicos. Tais agrupamentos eram
frequentemente reforçados e refinados metafisicamente e apareciam como
consequências naturais da expansão do ancestral conceito de Sacro Estado;
também pela forma através da qual a presença vitoriosa do “mundo superior” e o
princípio paternal e olimpiano buscava manifestar a si mesmo no mundo mutável.
Nesse respeito devemos recordar do antigo conceito iraniano de Império e de “Rei
dos Reis”, com sua doutrina associada do hvarenu (a “glória celestial”
com a qual os regentes arianos eram dotados) e a tradição indo-ariana do “Rei
do Mundo” ou cakravarti, etc., até o reaparecimento de tais
significantes nas premissas “olimpianas” da antiga ideia romana de Estado e
Império. O Império Romano também tinha seus conteúdos sagrados, os quais foram
sistematicamente mal compreendidos e subestimados não apenas pela cristandade,
mas também pelos escritores da história “positiva”. Até mesmo o culto ao
imperador possui um senso de unidade hierárquica ao topo de um panteão, que
eram séries de cultos ancestrais e territoriais separados pertencentes aos
povos não romanos, os quais eram abertamente respeitados desde que os
mantivessem dentro dos limites da normalidade. Finalmente, referente à unidade
“pagã” dos dois poderes, espiritual e temporal, isso está muito longe de
significar que eles estavam fundidos como uma raça “solar” o compreenderia,
isso expressa os direitos superiores que devem advir de uma autoridade
espiritual no centro de qualquer estado normal; portanto, isso era algo
bastante diferente da emancipação e “supremacia” de meramente um Estado
secular. Se fôssemos fazer similares alterações no espírito de verdadeira
objetividade, as possibilidades seriam esmagadoras.
MAIS
MAL-ENTENDIDOS SOBRE A VISÃO DE MUNDO “PAGÔ
Tem-se dito que existe a possibilidade de transcender certos aspectos do
Cristianismo. Mas algo deve estar bem claro: o termo latino transcendere
significa literalmente abandonar algo conforme se sobe, não conforme se desce!
Vale repetir que o ponto principal não é a rejeição do Cristianismo; a questão
não é demonstrar a mesma incompreensão sobre o Cristianismo que ele próprio tem
mostrado e amplamente continua a demonstrar, sobre o paganismo. Seria melhor
considerar uma questão de preencher, de completar a cristandade por meio de uma
mais elevada e mais ancestral herança, eliminando alguns de seus aspectos e
enfatizando outros, aqueles mais importantes, nos quais essa fé não necessariamente
contradiz os conceitos universais da espiritualidade pré-cristã.
Isso, infelizmente, não é o caminho tomado pelos círculos radicais que
temos mencionado. Muitos desses neo-pagãos parecem ter caído numa armadilha
deliberadamente armada por eles mesmos, frequentemente terminando em advogar e
defender ideias que mais ou menos correspondem ao particularismo pagão
inventado e atado à natureza, ausente de luz e transcendência, que foi a
criação polêmica da má compreensão cristã do mundo pré-cristão, o qual é
baseado, no máximo, num punhado de elementos esparsos daquele mundo em seu
declínio e involução. E como se isso já não fosse bastante, as pessoas
frequentemente recorrem a uma polêmica anticatólica, a qual independente de sua
justificativa política, quase sempre traz à tona e adapta os antigos clichés de
característica puramente moderna, racionalista e iluminista que têm sido usados
pelo Liberalismo, Democracia e a Franco-Maçonaria. Esse também é o caso, a um
grau, com H. S. Chamberlain e aparece novamente em certo movimento italiano
tentando conectar o pensamento racial com a doutrina “idealista” da imanência.
Há uma tendência geral e inequívoca no neo-paganismo a criar um novo e
supersticioso misticismo, ,baseado na glorificação da imanência, da Vida e da
Natureza, o que está em nítido contraste com o ideal olimpiano e heroico das
grandes culturas arianas da antiguidade pré-cristã. Isso indicaria muito mais
uma guinada na direção de um lado materialista, maternal e telúrico, se não se
exaurisse num nebuloso e diletante filosofar. Para dar um exemplo, poderíamos
perguntar, o que exatamente significa essa “Natureza”, que para tais grupos é
de tanto interesse? É de pouca utilidade destacar que certamente não é a
Natureza que foi vivenciada e reconhecida pelo homem antigo, tradicional, mas
uma construção racional do período enciclopedista francês. Foram os
enciclopedistas que, com motivos definitivamente subversivos e revolucionários,
inventaram o mito da Natureza como “boa”, sábia e salutar, em oposição da
podridão de toda a “Cultura” humana. Assim podemos ver que o mito de natureza
otimista de Rousseau e dos enciclopedistas marcha no mesmo nível que o “direito
natural”, o universalismo, o liberalismo, humanitarismo e a negação de qualquer
forma positiva e estruturada de soberania. Além disso, o mito em questão não
possui absolutamente nenhuma base na história natural. Todo cientista honesto
sabe que não há espaço para a “Natureza” na estruturação de suas teorias, que
possuem como objeto de determinação de equivalências puramente abstratas e
relações matemáticas. Na medida que pesquisa biológica e genética são levados
em consideração, podemos já ver o desequilíbrio que pode ocorrer no momento em
que alguém toma certas leis como definitivas, quando elas apenas se aplicam a
um aspecto parcial da realidade. Aquilo que as pessoas chamam de “Natureza”
hoje não tem nada a ver com o que a natureza representava para o homem
tradicional, solar, ou de acordo com o conhecimento que estava acessível a tal
homem graças à sua posição olimpiana e régia. Não há nenhum sinal disso em
qualquer um dos que advogam esse novo misticismo.
Incompreensões mais ou menos do mesmo tipo, surgem no que diz respeito
ao pensamento político. O paganismo é aqui frequentemente usado como sinônimo
de um conceito meramente mundano e exclusivo de soberania, que inverte as
relações. Já vimos isso nos estados do passado, quando a unidade de dois
poderes significou algo bem diferente. Ela proporcionou a base de
espiritualização da política, enquanto o neo-paganismo resulta, na verdade, na
politização do espiritual, desse modo ameaçando novamente o falso caminho dos
galicanos e jacobinos. Em contraste, o conceito ancestral de Estado e Império
sempre mostrou conexão com a ideia olimpiana.
Devemos pensar na atitude que diz respeito ao Judaísmo, Roma, Igreja
Católica, Franco-Maçonaria e Comunismo como sendo mais ou menos a mesma coisa,
apenas porque suas pressuposições diferem do pensamento simples popular? O
pensamento do povo ao longo dessas linhas ameaça perder-se no escuro, onde não
é mais possível fazer qualquer diferenciação. Ele mostra ter perdido sua
genuína simpatia pela hierarquia de valores e que não é capaz de escapar da
escolha entre as alternativas aleijadas do internacionalismo destrutivo e do
particularismo nacionalista, já que a compreensão tradicional de Império é
superior a ambos esses conceitos.
Limitando-nos a um único exemplo: o dogmatismo católico efetivamente
preenche um papel preventivo proveitoso ao impedir o misticismo mundano e semelhantes
erupções inferiores de passarem de certa fronteira; ele constrói uma forte
barragem que protege a área onde o conhecimento transcendente e os elementos
genuinamente supra-naturais e não humanos reinam - ou ao menos deveriam reinar.
Alguém pode bem criticar o modo como tal transcendência e conhecimento tem sido
compreendido no Cristianismo, mas não se pode levar isso na direção de uma
crítica “profana” que se prende a alguma arma polêmica ou outra, fantasiando
sobre a suposta natureza ariana da doutrina da imanência, de “religião
natural”, culto da “vida”, etc., sem realmente perder o nível: em suma, não se
pode, desse modo, atingir o mundo de seres primordiais, mas sim aquele da
contra-tradição ou dos modos de ser telúricos e primitivos. Esse seria, de
fato, a melhor maneira de reconverter tais pessoas com os melhores talentos
“pagãos” do Catolicismo!
Deve-se ser cauteloso para que não se caia nos mal-entendidos e erros
que mencionamos, os quais basicamente servem apenas para defender o inimigo comum.
Deve-se tentar desenvolver a capacidade de colocar-se no nível onde a confusão
didática não é capaz de alcançar e onde o diletantismo e arbitrariedade
intelectuais estão excluídos; onde se resiste energicamente a toda influência
advinda dos desejos confusos e apaixonados e do agressivo prazer nas polêmicas;
onde, finalmente e fundamentalmente, nada mais conta além do preciso, estrito,
objetivo conhecimento do espírito da Tradição Primordial.