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sábado, 15 de abril de 2017

O Rito Moderno e o Rito de Baldwin

André Otávio Assis Muniz
Grande Secretário Geral de Educação, Cultura e Orientação Ritualística do S.C.F.R.M.B.


            O “Acampamento de Baldwin” é considerado, dentro das diversas organizações que seguem o Templarismo Maçônico inglês, como datando de “tempos imemoriais”. É a mais antiga organização templário-maçônica da Inglaterra.
            Na obra “History of the Ancient and Honourable Fraternity of Free and Accepted Masons and Concordant Orders”, no capítulo “British Templary: A History of the Modern or Masonic Templar Systems with a Concise Account of the Origin of Speculative Freemasonry and its Evolution Since the Revival A.D. 1717”, escrito por James B. Macleod Moore e publicada em 1902, é suposto, inclusive, que deva suas origens aos Templários medievais originais.
            Obviamente que hoje, com o avanço das pesquisas históricas, sabe-se que apesar de antigo, o Acampamento de Baldwin tem seu mais longínquo documento datado de 1772, e depois desse, um de 1780.
            Na prática, afirmar que um Acampamento data de “tempos imemoriais”, quer dizer que tal Acampamento (nome dado na época para um grupamento de maçons praticantes de Graus Templários na Inglaterra, mantido até hoje nos EUA) tem origens anteriores à organização de um “Grande Priorado”, ou seja, goza de um status diferenciado que lhe permite realizar cerimônias e manter certas práticas que os grupos posteriores à fundação do Grande Priorado não têm. Essas cerimônias e práticas, no caso do Acampamento de Baldwin, são chamados de “Rite of Baldwyn”, ou seja, Rito de Baldwin. Este rito existe e é praticado somente na Província Maçônica de Bristol, Inglaterra. Feita esta brevíssima introdução, passemos ao conteúdo do mesmo.
            O Rito de Baldwin é chamado também de “Rito de Sete Graus” e demonstra, assombrosamente, a antiguidade da sequência das Ordens Sapienciais adotada pelo Grande Capítulo Geral da França no período de 1783-1785.
            Bristol esteve em contato com a França, devido ao comércio, desde a Idade Média, e esse contato fez com que Graus Maçônicos franceses se misturassem a Graus Ingleses, criando uma interessante amálgama.
            A sequência dos Graus do Rito de Baldwin é praticamente a mesma da do Rito Moderno, com a interpolação de alguns Graus ingleses.
Vejamos:
Graus Simbólicos:
1 -  Aprendiz;
2 - Companheiro;
3 - Mestre;
3.a - Apêndice do Mestrado: Companheiro do Real Arco.
Campo de Baldwin:
4 - Cavaleiro dos Nove Mestres Eleitos;
5 - Antiga Ordem dos Cavaleiros Escoceses Grandes Arquitetos subdividida em:
- Ordem dos Cavaleiros Escoceses Grandes Arquitetos;
- Ordem dos Cavaleiros Escoceses de Kilwinning;
6 - Cavaleiro do Oriente, da Espada e da Águia;
6.a - Priorado Templário:
- Cavaleiro de São João de Jerusalém, Palestina, Rodes e Malta;
- Cavaleiros de São João de Jerusalém;
- Cavaleiros Templários;
7 - Cavaleiros Rosa-Cruz do Monte Carmelo.
            Os assuntos tratados no Grau de Cavaleiro dos Nove Mestres Eleitos são os mesmos tratados na 1ª Ordem Sapiencial do Rito Moderno, ou seja, a Ordem do “Eleito” ou “Eleito Secreto”.
            Os Graus contidos na “Antiga Ordem dos Cavaleiros Escoceses Grandes Arquitetos” tratam dos mesmos temas desdobrados da 2ª Ordem Sapiencial, ou seja, a do “Escocês” ou “Eleito Escocês”.
            O Grau de Cavaleiro do Oriente, da Espada e da Águia está contido na 3ª Ordem Sapiencial do Rito Moderno, a do Cavaleiro do Oriente e da Espada, tratando dos mesmos temas.
            Um dos Graus contidos no Priorado Templário também foi usado para a composição da 3ª Ordem Sapiencial: Cavaleiro de São João da Palestina, ou seja, é um desdobramento dos assuntos contidos na 3ª Ordem.
            O Grau de Cavaleiro Rosa-Cruz do Monte Carmelo trata dos mesmos temas da 4ª Ordem Sapiencial, a do Soberano Príncipe Rosa-Cruz, e traz também temas relacionados ao Grau de “Grande Comandante ou Soberano Comandante do Templo”, que é tratado, no Rito de Baldwin, no Grau de Cavaleiro Templário.
            No caso do Rito de Baldwin, tendo em vista que de acordo com os documentos do Grande Conclave Templário de 1805, os estatutos originais da primeira grande organização templária inglesa datam de 1791, ou seja, 6 anos após a publicação do último ritual do Grande Capítulo Geral da França, que organizou os Graus Superiores em atividade no território francês, e que Thomas Dunkerley, o primeiro Grão-Mestre Templário inglês (falecido em 1795) já praticava esse sistema, temos bons motivos históricos para suspeitar de uma maciça influência francesa nos sistemas de Altos Graus instalados na Inglaterra e não só de uma influência francesa genérica, mas de uma influência advinda, muito especialmente, da organização dada aos Graus pelo Grande Capítulo Geral da França, em outras palavras, do Rito Moderno com suas Ordens Sapienciais.
            É interessante notar aos Irmãos brasileiros que tomam um partido separatista entre Maçonaria Inglesa e Maçonaria Francesa (sim, infelizmente os há, brasileiros que idolatram uma ou outra forma de Maçonaria excluindo a todas as outras), que o Grau Aliado da “Cruz Vermelha da Babilônia” é, nada mais nada menos, que a 3ª Ordem Sapiencial do Rito Moderno, a “Cruz Vermelha de Constantino” é uma versão cristianizada da 4ª Ordem (Soberano Príncipe Rosa-Cruz), e a Ordem da Cruz Vermelha, do Rito de York (Norte-Americano), tem também a mesma temática da 3ª Ordem Sapiencial (Cavaleiro do Oriente). Por sua vez, esses mesmos temas se encontram repassados no Rito Escocês Antigo e Aceito, e o Grau de Kadosh (5ª Ordem do Rito Moderno, Grau 30 do REAA) já era praticado na Inglaterra, assim como o de Rosa-Cruz, bem antes de 1845 (quando se estabeleceu o REAA por lá).
            Quando afirmamos e reafirmamos a unidade doutrinária essencial da Maçonaria e lutamos contra o sectarismo, não o fazemos como diletantes ou por “ouvir dizer”. Fazemos com base em pesquisa séria e dedicada, embasada sobre documentos, análises doutrinais das origens e real interesse histórico, antropológico e filosófico.
            Nossos votos são que tal pesquisa possa “abrir os olhos” dos que insistem em criar muros em vez de pontes.



sexta-feira, 14 de abril de 2017

O Feixe (fascio)

Julius Evola
Tradução e adaptação do italiano para o português: Marcelo D. Prati



“O poder do símbolo é maior do que o poder dos homens.” – foi dito por Olimpiodoro[1].
E Bachofen: “O símbolo desperta um portento, enquanto a língua pode apenas explicar. O símbolo faz vibrar as cordas do espírito todas juntas, enquanto a mente é submetida a manter um único pensamento de cada vez. O símbolo empurra suas raízes até a mais secreta profundidade da alma, enquanto a língua apenas acaricia, como um leve sopro de vento, a superfície do intelecto: o primeiro é direcionado ao interior, esse último ao exterior. Apenas o símbolo é capaz de ajuntar na síntese de uma impressão unitária, os elementos mais diversos. As palavras fazem finito o infinito, os símbolos, ao contrário, conduzem o espírito para além das fronteiras do mundo finito e condicionado, para o mundo infinito e real.”[2]
As correntes mais recentes e vivas da filosofia da cultura são caracterizadas precisamente por um interesse crescente pelo mundo do símbolo e do mito, concebidos não como poética e invenções arbitrárias, mas como dramatizações que encerram significados profundos dos tempos mais distantes.
E a tal interesse se associa congenialmente, um olhar voltado para o passado, para as “origens”, onde, no lugar da humanidade animalesca suposta pelo darwinismo e pelo evolucionismo, os novos pesquisadores parecem, em vez disso, figurar os traços de uma espiritualidade primordial insuspeitada.
Nas presentes notas, desejamos delinear o sentido mais profundo que houver para o simbolismo do Fascio tal como resulta desse tipo de pesquisa, ainda não tanto observada entre nós.
Como ponto de partida, se pode tomar os resultados de uma investigação gigantesca sobre a pré-história devida ao holandês Herman Wirth,[3] mas que foi traçada apenas pelo seu lado antropológico. Wirth se crê suficientemente seguro para admitir a existência de uma civilização cósmico-simbólica unitária, datada do megalítico, ou talvez ainda mais além; e também a existência de uma raça originária, portadora de tal cultura, que em imensas ondas parece ter chegado primeiro no norte e rumado ao sul, depois do ocidente ao oriente, dando lugar às civilizações seguintes similares, originariamente orientadas pelo mesmo espírito, marcadas pelos mesmos símbolos e cultos. Sobre esta tese corajosa, que não é de um “teósofo” ou de um amador, mas de um técnico, e que uma sociedade especializada é dada a inspecionar e verificar, nós aqui não nos demoraremos. O que nos serve é delinear o tema unitário que – para Wirth – parece ter estado no coração de tal civilização primordial, e que na realidade pode servir de ponto de referência também independentemente da hipótese acima traçada, ser acatada de maneira integral e literal.
Se trata do caso do sol no ano, tomado num significado real e simbólico ao mesmo tempo. O sol: princípio manifesto que como calor e como luz desperta a vida. Se diz “semente de vida”, “vida”, “luz das terras” (o landa ljóme rúnico), nas mais ancestrais ideografias o seu signo exprime igualmente o “homem”. E como no seu curso anual o sol morre e renasce, há inverno e primavera, assim também o homem possui o seu ano, morre e ressurge. O ano solar, o “deus-ano” como expressão de uma lei universal de renovo e renascimento – isso teria sido o centro de uma experiência espiritual primordial, cujos ecos, no entanto, se encontram um pouco em toda parte e que, além disso, não de agora têm estado inseridos no escopo da ciência comparada das religiões, também em atitudes e hipóteses muito diversas daquela de Wirth.
No mito solar um ponto há, contudo, sempre necessidade de uma importância especial, desde a mais alta pré-história, desde a mesma “civilização dos dolmens”: o ponto no qual a luz solar parece tramontar e limitar-se, abandonar a terra desolada onde depois, novamente, resplandece: é o solstício de inverno. Aqui aparece um símbolo fundamental: o machado. Aqui o “deus-ano” possui o signo do “machado”, é o “deus-machado” o “deus-espículo” que rompe em dois, arco ascendente e arco descendente, o signo do ano, muito frequentemente representado por um círculo. Aqui, portanto, a divisão simbólico-calendária se completa, se inicia o novo ciclo – o novo ano, a nova vida – a “luz” “nasce” ou “renasce”. Inicia-se uma nova “série sacra”.
Wirth chama “série sacra” uma série de doze signos fundamentais, os quais devem corresponder com todas as fases do sol no ano – “momentos” ou aspectos do deus – determinados pela relação com os doze símbolos do zodíaco. Wirth crê ser possível reconhecer uniformemente nos vários traços das civilizações do cepo nórdico-atlântico, no ocidente e no oriente, similares “séries sacras” que, contudo, teriam agrupado significados e valores múltiplos: o signo da “série sacra” se valeria simultaneamente seja como signo-base para um alfabeto pré-histórico (traços no linearismo pré-hieroglífico egípcio, amorítico, chinês, etc.), seja como correspondência gráfica de certas vozes, raízes de uma linguagem antiquíssima não inteiramente apagada nos idiomas mais recentes. Onde ao solstício de inverno o sol ressurge e se põe o signo inicial do novo ciclo, “a boca se abre” e “nasce a língua”. Em realidade, na antiga escritura egípcia e suméria o hieróglifo do sol que surge possui também o valor da “boca que se abre”, “língua”, “palavra”. Mas “falar”, naquelas tradições, possui também ao seu redor o valor de “criar” – a “palavra” do “deus” – de – é criadora.
Resumindo, e portando ao universal aquilo que está contido potencialmente nas ocorrências de uma tal simbologia, nós possuímos portanto, um significado de “criação” que simultaneamente é “nascimento solar”, “luz”, significado conexo ao número doze das “séries sacras”, que exprimem o completo desenvolvimento do novo princípio. Temos ainda o aspecto “machado” do deus simbólico no solstício de inverno, que, referente às duas partes ou arcos por ele cortados – um de tenebroso “inverno”, outro de renascimento solar – aparece frequentemente nos mais antigos traços sob a forma de duplo machado ou machado bicúspide, bipene ou labrys. A tal signo solar se conecta também um significado heroico e guerreiro: com trovão e machado bicúspide o deus Merodak combate o monstro do caos Tiamat; duplo machado ou duplo martelo temos os paleogermânicos Thor e Tarann, que são simultaneamente divindades relampejantes das batalhas; o machado bicúspide é a presa despedaçada pelo herói Hércules na sua luta simbólica contra as Amazonas e dessa Zeus Cario traz seu nome, Zeus Labrandeus; e assim segue. No geral, está ligado a tal signo um significado que se encontra em todos aqueles mitos ou lendas onde heróis solares lutam contra monstros ou dragões, os quais personificando as forças obscuras e selvagens do caos, ou seja, contra aquele mesmo elemento de trevas do qual – no mais abrangente mito encarnado da mesma natureza – o sol, realçando-se ressurge vitorioso: natalis solis invicti.
Quanto ao número doze, dado sua correspondência urano-solar, vemos que ele recorre em qualquer lugar onde se constitua um centro o qual, de um modo ou de outro, tenha encarnado ou buscado encarnar aquela tradição que, num sentido analógico e eminente, possamos exatamente chamar de “solar”, ou em qualquer lugar que o mito, ou lenda tenham dado em figuração ou personificação simbólica o tipo de tal regência. Para exemplo, aqui não saberíamos nem por onde começar. Aos doze Aditya solares, fazem referência na nas tradições hindus, as doze partes das Leis de Manu. Doze são os grandes Namshan do “conselho circular” segundo a tradição tibetana e doze seriam, segundo a chinesa, os discípulos de Lao-Tsé. Não outro é o número de portas da “Jerusalém celestial” na tradição hebraica e o mesmo se dá com os discípulos do Cristo. Doze estágios completa o herói caldeu Gilgamesh ao longo da “via solar” para alcançar a terra “para além das águas da morte” e doze “trabalhos” completa Hércules. Doze eram as grandes divindades olímpicas e doze os principais cavaleiros da “Távola Redonda” do Rei Artur e da lenda do Graal, assim como os Condes paladinos de Carlos Magno. E muitas outras correspondências poderiam ser facilmente encontradas. Ver em tudo isso um simples “acaso” parece muito fácil. À nossa percepção é muito mais sábio pressentir aqui traços mais ou menos conscientes de um único tema, de um único significado, de uma única tradição, histórica ou supra-histórica que tenha emergido aqui e ali, através do subterrâneo, tanto sobre o plano do mito quanto sobre aquele da realidade[4].
Agora, traços do gênero estiveram presentes também na mais antiga romanidade e, para dizer a verdade, de moto característico, desde suas origens. Não se encerra talvez um oculto significado no fato de que, segundo a tradição, Rômulo, por ter visto doze abutres, teve o direito de dar seu nome à cidade eterna? E que doze seria o número das ancilia estabelecido por Numa como signo, recebido do “céu”, da proteção divina?[5] Doze, de todo modo, foram em Roma os altares do deus Giano, o qual não é mais que uma figuração do “deus ano”, o deus dos começos não livre de relações com o mesmo “demone” da guerra – ou seja, com a potência sobrepujante do elemento heroico: que era o libertar de um demone que ansiava significar, tal como se refere Virgilio, ao fato de que apenas em tempo de guerra o templo de tal deus era deixado aberto. Doze – como aquelas gregas – são, além de tudo, as máximas divindades romanas segundo Varrone; doze é o número de sacerdotes de vários colégios romanos entre os mais antigos – por exemplo, os Arvali e os Sali – doze é o número dos lictores instituídos por Rômulo – como doze, enfim, são as varas do mesmo Fascio romano, segundo aparentam os fasci capitolinos que ainda existem. Assim atingimos nosso ponto central – temos todos os elementos ocorrentes para compreender desde o mais íntimo aquilo de mais profundo pode ser encapsulado neste símbolo maximamente significativo para a romanidade. O fascio romano se compunha de dois elementos: daquelas exatas doze varas – e de um machado, que às vezes é um machado bicúspide, exatamente como o machado pré-histórico que se encontra nos traços neolíticos e talvez ainda paleolíticos; nos quais se acompanhava com o signo do renascimento, o “homem com os braços erguidos.”
Consideraríamos aqui também o “acaso”? É seguro que ao pensar sobre isso, possam ser conduzidos aqueles que – enquanto admirando-a – não vejam na romanidade mais que uma grandeza puramente temporal, tendo como superstição “superada” tudo aquilo que como rito e como símbolo foi inseparável, em Roma, de toda instituição e toda manifestação da vida, seja individual ou coletiva; rindo daquilo que ao romano vale como último, como mais firme segurança, ou seja, aquela que vem dos “deuses” – se entenda: o elemento “divino” – foi feita a potência e a aeternitas romana como ao limite da pax augusta et profunda firmando-se imperialmente como o limite do mundo conhecido. De nossa parte, não saberíamos, contudo, compartilhar de tal postura. Para nós, Roma, mais do que uma grandeza material, politico-jurídica e militar, foi uma grandeza espiritual, ainda que essa não sinta a necessidade de demorar-se em abstrações filosóficas e de devotar-se a uma insalubre e evasiva e agrilhoante religiosidade do tipo asiático-semítico. Não seríamos capazes de “crer” que a romanidade – assim escrupulosa na exata determinação sacra e de detalhes quase insignificantes – tenha mais tarde decidido ao “acaso” a escolha e a determinação de um símbolo assim central de sua civilização, como o Fascio litório. E caso se considere por outro lado, em que medida continua na magistratura romana um caráter sacro, ainda se pode considerar que nos mesmos fasci dos litórios pode estar incluso um significado superior; que na realidade aqui se tratam dos traços de uma sabedoria antiga e solar, do signo ritual de um destino e de uma grandeza.
Ao redor do machado, símbolo heroico e sacro que “separa”, que fecha uma época e abre “triunfalmente” um novo ciclo,[6] uma nova criação, como luz de um novo “ano” ou saeculum, estando agrupados os signos de uma totalidade, de um desenvolvimento perfeito em sentido “solar”: os doze[7]. Agora, na história do mundo, poucas realidades aparentam ser mais aderentes do que a romana a um tal símbolo, mais fieis – a uma aeternitas cesárea e a uma universalidade solar – a essa promessa ritual. E Roma é, de tal forma, passada da história para a supra-história, tanto que faz predizer até mesmo os escritores da nova religião semítica que “enquanto Roma permanecer íntegra, as assustadoras convulsões da idade última não serão temíveis – mas o dia em que venha a cair, a humanidade estará próxima de sua agonia”[8] – assim, a partir de uma transfiguração permanece presente seu símbolo, o Fascio.
Do símbolo, uma multiplicidade de aspectos que não se contradizem, mas se hierarquizam, é a característica fundamental. De um símbolo se pode evocar o corpo. Mas dele não se pode evocar a alma, aquela parte que, - segundo as palavras de Bachofen citadas no início – conduzem o espírito para além do condicionado e contingente. O que também vale para o Fascio. Isso pode valer como signo num nível político – mais profundamente, isso pode valer como signo para um nível étnico; enfim, isso pode possuir valor num lugar de espiritualidade pura, daquela espiritualidade que é, ao mesmo tempo, potência.
Que a raça, que hoje tem celebrado os signos e o nome da romanidade precisamente como base para a vontade de um “renascer” nacional – podendo sustentar ali também a alma, a adequar-se como potência aos significados de ressurreição “triunfal” e de consumação “solar” tacitamente encerrados no signo arcaico do machado e dos doze: nenhuma outra pode ser a esperança daqueles que ainda “creem” e que resistem contra as grandes sombras da decadência espiritual que pairam sobre o ocidente moderno.




[1] OLIMPIODORO, Ms. Bibl. Royal P., Praxis mz., f. 72.
[2] J. J. BACHOFEN, Urreligion und antike Symbole, Leipzig, 1928, v. 1, pp. 283-284.
[3] H. WIRTH, Der Aufgang der Menschheit – Unterschungen zur Geschichte der Religion, Symbolik und Schift der atlantich-nordischen Rasse, Jena, 1928.
[4] Sobre tal tema, vale assinalar a obra grandemente notável de R. GUENON, Le Roi du Monde, Paris, 1928.
[5] Vale a pena mencionar sobre a tradição romana da ancila, o escudo recebido do céu como pignus imperii (OVIDIO, Fast., III, pp. 259-398). Teriam sido obtidos por Numa para assegurar a perenidade de Roma e, além disso, equivale a um símbolo pélvico contentor da ambrosia, ou seja, um alimento perene imortalizador (crf. F. DUMEZIL, Le festin d’Immortalité, Paris, 1924, pp. 127-151). Agora, o colégio dos Salis, instituído por Numa para a guarda dos pignus imperii, composto de doze membros, junto a tal escudo, possuía outro símbolo: a hasta, ou lança. Assim, na romanidade vemos já, exatissimamente, os mesmos símbolos que surgem no mito mais característico de outro grande período imperial europeu, aquele feudal-cavaleiresco: no mito do Graal. De fato, doze, como já dissemos, são os cavaleiros do Graal, que guardam a tempo a lança (=hasta) e o cálice, que, como a ancila, oferece um alimento místico perene e imortalizador. Observemos que, embora adaptado ao cristianismo, o mito do Graal possui origens nórdicas pré-históricas: o cálice e a lança figuravam já, juntos da negra “pedra do destino” que proclama o verdadeiro rei (e é estranho o caso de que também a romanidade tenha conhecido um lapis niger, que foi posto no início da via Sacra) para os objetos místicos levados com ele até a Irlanda da “raça divina” dos Tuatha Dé Danann (crf. C. SQUIRE, The Mythology of ancient Britain and Ireland, London 1909, p. 34).
[6] Poderemos facilmente notar como elemento “triunfal” encontrado, por outro lado, a expressão também do símbolo romano ligado ao Fascio, a Águia, animal considerado também como “solar” da antiguidade. Segundo a tradição, sob forma de “águia” teria voado da pira a alma imperial de Augusto (cfr. L. PRELLER, Römische Mythologie, Berlin, 1858, pp. 787, seg.); e tal águia corresponde efetivamente a outra que, no mito, abandonou o rei paleoirânico Yima e que significava o hvarenô. Ora, o hvarenô é a “glória” concebida pelos iranianos como um “fogo celeste” ou “solar” que consagra e faz imortais os reis, atestando-os com a vitória. (cfr. F. SPIEGEL, Eranische Alterrumskunde, Leipzig, 1871, v. II, pp. 42-43). É a tradição de uma ancestral espiritualidade do tipo heroico, que portanto, é possível de encontrar em quase todas as grandes civilizações pré-modernas sobretudo arianas (cfr. o nosso escrito sobre Il carattere sacro della regalità em La Nobilità della Stirpe, n.1 de 1932)
[7] Não é, portanto sem interesse o fato de que alguém tenha tentado encontrar o doze no ciclo imperial romano: SVETONIO, p. es., escreveu uma Vita dei dodici Cesari. Doze saecula, ou seja, uma profecia etrusca tinha marcado a vida de Roma.
[8] Cfr. LATTANZIO, Inst., VII 25, 6.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Símbolos Heroicos da Tradição Romana


Julius Evola
Traduzido e adaptado do texto original italiano por Marcelo D. Prati


A consideração, que certamente é aquela que resume as pesquisas especiais, faz com que muitos significados das antigas tradições, as quais ainda hoje poderiam falar-nos, não sejam mais conhecidos.
Pode-se notar, por exemplo, que aquele culto da atividade [física] que hoje possui mil formas, e assim permeia intimamente a vida, colocando-se nas próprias bases da potência econômica-industrial europeia e projetando-se nos “mitos” por ela forjados – há correspondências precisas na antiguidade clássica. Não apenas isso: mas nesta, encontramos o fato de que o termo “culto” passa de um sentido metafórico para um sentido literal. Um ciclo de símbolos, mitos e instituições nos falam de uma consciência, na qual a ação se transpunha no significado de um rito sacro, de um encontro entre forças humanas e forças cósmicas. E em tais circunstâncias, voltar a atenção para tais antigas tradições é, a nosso parecer, algo mais que simples curiosidade – por uma razão que em breve indicaremos.
Existe toda uma mentalidade, pela qual se dizer “religião” e se dizer “espiritualidade” é considerada a mesma coisa; que tudo aquilo que fica fora da devoção, fé, remissão a “Deus” e – mais ainda – do relacionado ao sacerdote, à ascese, à evasão mística e semelhantes assuntos, seria então algo “profano”, leigo ou mesmo materialismo.
Entre nós, tal estranha mentalidade, pode-se dizer que tem predominado apenas recentemente. Pertence a filosofias moderníssimas, de cunho idealístico, o reagir contra essa: em vez disso, que possamos ampliar um ponto de vista diverso, mais largo e mais verdadeiro, no qual cada espiritualidade de tipo “religioso” aparece apenas como uma das formas da espiritualidade, que não pode pretender nenhuma prioridade, nenhuma dignidade superior sobre as outras possíveis e não religiosas.
Assim (desejamos ajudar-nos com um esquematismo), seja o antigo Oriente ou no Ocidente, em alguns de seus períodos medievais, conheciam duas grandes vias: a Ação e a Contemplação. Seja através da “ação”, seja através da “contemplação” – se dizia – pode-se atingir aquilo que no homem está além do homem. E de uma via, vinha a tradição, o rito e a casta dos “guerreiros” (kṣatriya) – a “verdade heroica”; da outra, a tradição, o rito e a casta sacerdotal (brāhmaṇa) – a “verdade sacra”. Duas formas primordiais e, por assim dizer, duas “categorias” da cultura.
O antigo mundo oriental, contrariamente ao que pensam muitos por falta de uma cultura especial, conheceu a um e a outro aspecto[1]. Que no mundo ocidental, contudo, seja acima de tudo caracterizado pelo predomínio do elemento “ação” – é algo admitido pela maioria. Mas não é por isso que a base de toda renovação, em sentido ocidental, deve ser a transposição da “ação” em um significado espiritual? E em seguida, a compreensão viva daquelas formas, nas quais não o princípio religioso-contemplativo, mas sim o princípio heroico-guerreiro se constitua como espírito e via na direção do alto?
Agora, como dizíamos, as nossas antigas tradições, especialmente aquela romana, são ricas de tais formas. Trata-se apenas de alcançar a alma dessas, deixando de lado o exterior e o empírico, sobre os quais se aplicam também os preconceitos que a cultura moderna tem formado a respeito. Nós aqui desejamos precisamente tentar atingir senão o sentido íntimo de quaisquer dessas formas, onde se ocultam os símbolos das tradições heroicas ocidentais.
Bem se surpreenderia o homem moderno dos esportes quando se lhe dissesse que, aquilo que na antiguidade se corresponderia ao esporte – as “diversões”, os “jogos”, seja tanto à estima dos gregos, quanto à dos romanos – possuía um caráter sacro.
Ludorum primum initium procurandis religionibus datum” afirma Livio[2]. Seria perigoso negligenciar ao “sacro combate”: se as caixas do Estado romano estão vazias, se podem simplificar os jogos, mas nunca suprimi-los[3]. A constituição de Urso torna obrigatório aos duoviri e aos edili de celebrarem os jogos em honra dos deuses[4]. Vitruvio deseja que em todas as cidades possuam seu próprio teatro, “deorum immortalium diebus festis ludorum spectationibus[5], e o presidente dos jogos do Circo Massimo, originalmente era idêntico ao sacerdote de Cerere, Liber et Libera. Os jogos eram de tal maneira ligados aos templos que os imperadores cristãos tiveram que permiti-los para conservar os templos, cujo desaparecimento também carregaria consigo o dos jogos. Uma ágape, cujos “dèmones” eram convidados (invitatione daemonum) consagrava os “divertimentos”, reproduzindo o valor simbólico de uma “participação” místico-ritual[6]. “Ludi scenici... inter res divinas a doctissmis conscribuntur” diz Agostino[7].
Res divinas, portanto. Vejamos assim aparecer nos circos romanos, números e símbolos sacros. Eis os “Três” nas “ternae summitates metarum”, nas “tres arae trinis Diis magnis potentibus valentibus” como Tertuliano[8] se refere à grande Tríade dos Mistérios de Samotrácia; e igualmente, à tríade das mães da natureza Seia, Segetia, Turtilina. Eis os “Cinco” nos cinco spatia dos circuitos domizianos – e os “Sete” no número total de giros e naqueles dos “ovos” e dos “golfinhos” e dos “tritões”, que igualmente figuravam-se no circo[9].
Mas o “ovo” e o “tritão”, por sua vez, eram símbolos que, segundo Bachofen, se reconectavam a uma grande dualidade cósmica: o “ovo” exprimia a potencialidade onde toda possibilidade está contida como no logos spermatikos – e o “tritão”, sacro a Poseidon-Netuno, exprimia, através deste Nume, a potência masculina, fálica-telúrica, das “águas geradoras”, aquelas, onde na tradição reportada por Plutarco, a corrente do Nilo era concebida simbolicamente como a força do “masculino primordial” que penetrava Isis, concebida como a própria terra do Egito. Esse mesmo simbolismo semeia a situação do local dos “divertimentos” e das pistas. É no vale entre Aventino e Palatino, sacramentado para Murcia – uma das deusas do “gremium matris terrae” – que Tarquinio erige o seu circo; e o local pré-escolhido para as “Equiras” está entre a corrente do Tevere e as “metae” que no Campo de Marte eram assinaladas com espadas fincadas[10].
De tal modo, a ação percorria símbolos sensíveis de significados superiores, tanto que, segundo Piganiol, os jogos tinham também um sentido de “um método e uma técnica mágica”[11] A arremetida dos cavalos, a vertigem de sua corrida resoluta e ardente rumo à vitória por sete voltas, evocava o mistério da corrente cósmica lançada no kyklos tis genéseos segundo a hierarquia planetária. Nos dois cavaleiros, que entravam, um pela porta do Oriente, o outro pela porta do Ocidente, na arena para envolverem-se numa luta mortal; nas cores primitivas das duas facções, que são aquelas mesmas as quais se repartia o ovo cósmico órfico, o branco simbolizando o inverno e o vermelho simbolizando o verão, ou ainda melhor, a potência urânica do dia e aquela telúrica da obscuridade – se incorporava também a luta entre duas grandes forças das coisas. Cada “meta”, “meta sudans”, era lithos empsixos e o altar invisível construído para Consus – um dèmone telúrico à espera do sangue derramado nos jogos cruentos (munera) – em uma “meta”, correspondia ao “puteal” etrusco, com igual sentido de ponto de saída de potências escuras. Mas no alto se erguiam estátuas de divindades triunfantes, que evocavam o posto do princípio urânico, assim que o circo se tornava um concílio de numesdaemonum concilium – cuja invisível presença era ritualmente selada pela presença de assentos vazios e aquilo que, se por um lado poderia parecer uma pura vitória atlético-esportiva, por outro passava o sentido de uma evocação mágica, cujo risco estava permeado com o perigo dos mesmos combates e jogos e cuja vitória marcava e renovava no homem aquela das forças urânicas sobre as forças inferiores ctônico-telúricas.
É assim que o vencedor aparecia revestido de caráter divino, ou como uma momentânea encarnação de uma divindade. Na Olimpia, no momento do triunfo, se reconhecia no vencedor uma encarnação do Zeus local. A aclamação ao gladiador vitorioso acaba permanecendo mesmo na liturgia cristã: eis eonas ap’eonas.

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Tentemos penetrar ainda mais a fundo o íntimo espírito dessas antigas formas, que nos devem parecer um tento quanto estranhas.
Se, como deseja Schelling, a mitologia não exaure em uma mera invenção poética e emerge de um processo necessário, objetivo, do espírito, que dramatizou figurativamente nos Deuses, contatos interiores com as mesmas potências, que exteriormente se manifestam no âmbito da realidade e dos fenômenos naturais – se tal ponto de vista, não distante, depois de tudo, daquele de nosso Vico pode ser assumido, então tomaremos a essência espiritual dos jogos antigamente consagrados aos Deuses e Heróis ou a suas empreitadas simbólicas, dizendo que nesses, a ação era destinada a evocar e reacender aqueles contatos, a criar, portanto, sombras de uma consciência cósmica e de duas maneiras: através do poder misterioso das analogias, base de grande parte dos cultos antigos, mesmo de tipo religioso; e através das formas de superação realizadas através da experiência heroica.
De tal ideia, se pode obter uma confirmação em relação a aquele que é o máximo significado: a embriaguez heroica da agone e da vitória posta como um interesse superior à própria vida particular, foi considerada na antiguidade clássica como imitação ou início para aquele ímpeto ainda mais alto e puro, pelo qual no iniciado a morte se transfigura em ressurreição (“morte triunfal”). Em tal modo se explicam os frequentíssimos referimentos aos “combates” e aos divertimentos do circo – agōna ton mystion – e às figuras dos vencedores olímpicos na arte funerária pagã: tudo aquilo pontava analogicamente a “melior spes” do morto – era a sensibilização do “tipo de ato” que poderia levá-lo a vencer o Hades e a conquistar a glória de uma vida eterna, não de acordo com o modo da “verdade religiosa”, mas sim de acordo com o modo da “verdade guerreira ocidental”.
No sarcófago de Haghia Triada, no baixo-relevo do carro greco-etrusco de Monteleone, em Bolonha – são sempre as imagens da “morte triunfal” que ocorrem. Vitórias aladas cobrem as portas do Hades ou sustentam o medalhão do morto.  Numa celebração pindárica da divindade dos lutadores triunfais, na Grécia os Enágonos e os Prômacos se tornam Deuses místicos, condutores das almas à imortalidade. Cada Nike no orfismo se torna símbolo da vitória da alma sobre o corpo – e é chamado de “herói” aquele que acaba de ser iniciado, herói de uma luta trágica e sem descanso. Aquilo que no mito se expressa como vida heroica, é posto como modelo do víos órfikos, onde nas imagens sepulcrais Hércules, Teseu, os Dióscuros, Aquiles são designados como iniciados órficos: stratós, milícia, é denominada a comitiva dos iniciados e mnasístratos, o hierofante do mistério. Luz, vitória e iniciação se tornam ideias que uma quantidade de figurações monumentais gregas mostram uma conexão conjunta. Hélios como o sol nascente, ou Aurora, é Nike e possui uma carruagem triunfal: e Nike é Telete, Mystis e outras personificações ou divindades da consagração iniciática, que remetem ao renascimento espiritual.
As referências são claras e precisas. Últimos ecos de sabedoria heroico-simbólica alcançam, portanto, aquelas formas dos jogos romanos, sobre os quais, uma difamação sistemática tem feito ver apenas expressões de brutalidade e de crasso materialismo. E, de fato, como podemos notar, Roma, de qualquer forma “religiosa” tinha bem pouco cuidado – uma, no fim das contas, valia tanto quanto a outra: mas isso porque foi através da ação que essa foi de encontro e deu a conhecer o espírito, na forma de daqueles que combatiam e não daqueles que “pregam”; e na vitória o deu a conhecer, até o limite solar constituído pelo Império.

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Piganiol observa como na antiguidade a noção do “duplo” ou de alma, aquela de Fúria ou Erínias, aquela da deusa da Vitória e da deusa da Morte, se confundiam em uma única noção; estabelecendo-se a “curiosa concepção de uma divindade que é, por um tempo uma deusa das batalhas e o duplo do homem”.
Para alcançar o sentido de tal tradição, é necessário tornar-se capaz de passar da compreensão abstrata, para a compreensão concreta e viva, em termos de experiência interna e subjetividade, daquilo que se encerra nas singulares noções agora ditas.
O “duplo” é retomado na noção de “dèmone” que se encontra em Plotino[12], juntamente ao ensinamento de que “cada homem possui seu próprio dèmone”; ainda melhor, a aquilo que nas tradições hindus corresponde ao “linga” e ao “karana-carira” – duas partes do ser integral do homem que podem ser interpretadas pelo termo: “indivíduo individualizante”[13]. Se trata de uma força profunda, raramente alcançada pela clara consciência, que como originariamente se foi determinado, a consciência finita na forma e no corpo em que se desperta, assim restando sempre a base dos processos profundos da vida, que fogem, habitualmente, de todo controle direto. Em termos modernos, se poderia então dizer que o “duplo” é um símbolo para o diferencial entre o ato e o fato; e a ideia, que pode salvar-se do destino da decadência somente aquele que no Eu se transponha da consciência do “fato” (consciência empírica) na direção da consciência do “ato”, ou autoconsciência transcendental, pode dar a chave do antigo ensinamento, que é imortal “aquele que não mais possui dèmone” vindo a tornar-se, como o spoudaíos plotiniano, ele mesmo o próprio dèmone.
Agora, sendo crise do objeto empírico finito, atrelado ao “fato”, que é aquilo que vulgarmente se chama morte, vemos erguer-se de si mesmo a razão da assimilação entre o “duplo”, parte transcendental do ser humanos e a deusa da morte. E não apenas isso: se entre os místicos é mortificação, renúncia ao Eu, dedicação a “Deus” aquilo que conduz a afrontar a crise acima – na oposta tradição, uma atitude de superação ativa, de “exaltação”, de liberação das forças mais profundas do ser, é a via. E se em formas inferiores, a isso se chamava então de dança frenética, o ritmo menádico e coribântico – o que em uma forma superior na lúcida vertigem do perigo e no ímpeto heroico que se desperta entre as batalhas foi reconhecido o local por uma experiência análoga: “ludere” [divertir-se, jogar], já etimologicamente compreende a ideia de “desprender” – alusão à virtude, que há na luta, de dissolver o limite da ciência finita e de romper, de desnudar, o estado atual mais profundo. Daqui, a segunda assimilação: aquela do “duplo” e da “deusa da Morte”, com as “Fúrias” e as Erínias e as deusas da batalha – ideia que encontramos nas antigas tradições nórdicas: as Valquírias, deusas tempestuosas das batalhas, que conduziam simbolicamente as almas dos guerreiros ao Valhalla, vieram também a ser consideradas como essas mesmas almas. Só resta a última assimilação se refira à deusa da Vitória, que anteriormente já foi esclarecida. Onde os atos do espírito são celebrados – diferente do mundo da “contemplação” – no corpo de ação e de processos reais, entre físico e metafísico, entre visível e invisível, se estabelece um paralelismo: e a vitória surge da visibilidade de uma “morte triunfal” e de uma epifania mística, ou seja, da determinação da força abissal evocada (as Fúrias, as Erínias, etc.) na plena atualidade do espírito. Por isso, cada Vitória, na nossa antiga tradição, assumia um significado sacro. Por isso, no imperador e no duce aclamado no campo de batalha se tinha o senso do abrupto manifestar-se de uma força de ordem superior, que o glorificava. O culto imperial, seja tanto na forma romana, quanto naquela iraniana, onde os reis eram reconhecidos como tais pelo “hvarenô” – termo que compreende os sentidos de “glória” e de “fogo divino” – que se testemunhava com a vitória – tal culto, tomado em sua verdade, não nas suas aberrações, não possui outra origem.
Em tudo isso, portanto, há algo mais que puro “símbolo”, “mito” ou “superstição”. Por nós mesmos, vemos em vez disso os traços de uma tradição a qual conheceu “heroicamente”, “ocidentalmente” o espírito e que manteve o rosto ao menos voltado para o alto, mais do que qualquer tradição “religiosa” de tipo exótico e anti-romano, qual, por exemplo, aquela semítica-cristã.

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Pode-se falar de uma tal tradição heroica ainda hoje? Não cremos. Como dizíamos ao princípio, em mil formas o mundo moderno falseia uma indomável vontade de ação, que deixa às “fés” e aos “misticismos” um espaço sempre mais restrito. Se os “contatos” são fechados, se os deuses estão mortos, se um limite de necessidade, de mecanicidade e de mera materialidade é carregado sobre cada coisa, não obstante essa realidade pertença sempre ao mesmo bloco; e quando a consciência “atual” for erguida, uma alma será adicionada a seu corpo: como despertando – embora em outros homens, em outras formas em outras proezas – o antigo significado da ação, onde essa se transfigura em uma via, um valor, um rito, uma liberação.
Isso, por graus de luz, do alto para baixo, hierarquicamente. Mesmo o insano frenesi dos esportes modernos poderia ser então trazido à tona: nas mesmas loucuras de empreitadas que portam consigo os limites pelo único prazer de si mesmas; na magnética vontade que congela cada espinha e cada instinto e proveniente da exatíssima medida de cada movimento, seja sobre máquinas devoradoras do vento, seja em vigorosa vicissitude física, seja no alto, pelas rochas, paredes e cristas e geleiras na iminência do céu e do abismo – em tudo aquilo que hoje é mero “esporte”, mera questão corpórea, homens novos possam talvez despertar um símbolo, uma luz espiritual, um contato com as forças primordiais em seus membros, que eram as “Numes” dos antigos; sim que a agone física volte a ser metafísica – e a vitória uma sombra do estado transcendental.




[1] No oriente, o sistema Samkhya, aquele dos Trantras, e, sob um certo aspecto, o Budismo, se refere à casta dos “guerreiros”. Igualmente, o Bhagavad-gîtâ é considerado como uma formulação do saber tradicional para uso dos “guerreiros”; a “verdade” dos quais se exprime numa passagem da Brhadâranyaka-Upaniṣad (I, IV, II,), onde se afirma que o Brahman cria uma forma mais alta e mais perfeita de si mesmo, que é a aristocracia guerreira e a série de divindades guerreiras: onde “não há nada superior à aristocracia guerreira e o sacerdote venera humildemente ao guerreiro quando realiza a consagração de um rei”. Em termos modernos, isso equivaleria ao direito incondicionado e à supremacia do Estado, cuja essência espiritual (cujo “estado ético”, segundo o termo gentiliano),está acima de qualquer tipo de organização e de “verdade” eclesiástica.
[2] LIVIO VII, 3.
[3] DIO CASS. XLVI, 31.
[4] Lex coloniae genitivae Juliae, 70-71.
[5] De archit. V, 3, 1.
[6] DIO CASS. LI, 1.
[7] AGOSTINO. Civ.Dei, IV, 26. em A. PIGANIOL, Recherches sur les juex romains. Strasbourg, 1923, pp. 124, 137.
[8] TERTULLIANO, De Spect., 8.
[9] J.J. BACHOFEN, Urreligion und antike Symbole. Leipzig, 1926; Bd. I, pp. 347, 329-347.
[10] Ibid. Bd. I. pp. 340-342. O símbolo viril da espada fincada no Campo de Marte exprime o princípio oposto a aquele das águas fluentes, que determinavam o outro limite e que tradicionalmente teve sempre relação com o princípio telúrico-feminino.
[11] Op. cit. p. 149, passim.
[12] Cfr. p. es. Enneadi, III, IV, 5; IV, III, 13, etc.
[13] Cfr. J. EVOLA. L’uomo come Potenza. Roma, 1927, pp.232-237; R. GUENON, L’Homme et son Devenir selon le Vêdânta. Paris, 1925. O termo sânscrito linga contém a ideia de “princípio gerador” e corresponde à assimilação latina de genius (ou dèmone) e genus como em lectus genialis. Quanto ao outro termo, karana, esse contém a ideia de “causalidade ativa”, em oposto a karya, que designa aquilo que ele determina, o “causado”, que aqui seria a coisa empírica. Enquanto o linga-çaira carrega igualmente o interno das tendências (samskara) adquiridas em experiências precedentes, se poderia talvez estabelecer uma correspondência com a “coisa histórica” ou “historicidade da coisa” do idealismo moderno.

Fantasia e Conhecimento

Julius Evola

Traduzido e adaptado do  texto italiano original por Marcelo D. Prati

Um dos maiores preconceitos que, no dia de hoje impedem, de maior maneira, a compreensão do mundo antigo, ou daquelas civilizações que, até agora conservam traços que são irredutíveis às formas da civilização “moderna”, é aquela de supor que o homem sempre possuiu as mesmas formas de conhecimento com as mesmas faculdades que hoje se encontram na maioria das pessoas.

Tomemos a fantasia ou a imaginação, por exemplo. Hoje cremos que essa, no estado de vigília, na maior parte dos casos, é uma faculdade puramente subjetiva: essa elabora formas ausentes de qualquer relação com a “realidade”, tanto que hoje, dizer fantástico e dizer irreal ou arbitrário dá tudo no mesmo. Esse tipo de julgamento se estende a grande parte das expressões da civilização pré-moderna, baseado na importância que, neles, nas fábulas, mitos, símbolos, etc., estava a faculdade fantástica. Não apenas isso: o mesmo se pensa do que concerne a certos fenômenos supernormais ou extranormais que, ainda hoje, aqui e ali, como visões ou aparições, ocorrem esporadicamente em alguns indivíduos, em circunstâncias especiais.

Esse é um caso específico no qual um pressuposto arbitrário conduz a gravíssimas incompreensões.  A fantasia seria sempre produtora de formas irreais que habitam o ar? Ainda se referindo ao homem de hoje, isso é discutível. Tomemos o fenômeno do sonho. Nem tudo no sonho é fantasia irreal ou a tradução de sensações corpóreas obscuras e de impulsos reprimidos. Em alguns casos, o sonho é a tradução simbólica e, apenas como tal, fantástica, de uma percepção que, em si, é real, objetiva. Por exemplo, um adormecido pode perceber confusamente o barulho de uma cadeira que cai e vivê-lo simbolicamente na imagem de um sonho com um terremoto ou um golpe de canhão. Essa imagem, em si, é fantástica, mas como símbolo não é irreal: sendo arbitrária unicamente na maneira em que a percepção real é traduzida pelo adormecido. Aquele que estivesse desperto e pudesse perceber simultaneamente o barulho físico e a imagem vista pelo adormecido, reconheceria claramente a correspondência, que é o fato que a fantasia aqui não foi criada do nada, mas traduziu através de uma imagem simbólica subjetiva, algo de objetivo.

Isso ocorre porque no estado do sono e do sonho, a fantasia se encontra em um estado diferente que quando se está desperto: ela é, numa certa medida, livre e ativa, não é restrita, como na vida no estado de vigília, pelos sentidos e pelo controle do cérebro. Agora, sobre semelhante estado da fantasia, hoje encontrado apenas no sono, é necessário supor que se encontrava fundamentalmente presente de forma quase ordinária e normal na mesma vida de vigília do homem antigo. E essa é a chave para entender tantos aspectos mal compreendidos de suas civilizações, de suas tradições e de seus mitos.

Naturalmente, aqui se precisa admitir outra premissa, vale dizer que a natureza possui um lado interno e um lado externo, com os fenômenos físicos que chegamos a conhecer através dos sentidos físicos correspondendo à exterioridade, ao modo exterior e físico de se mostrar de forças mais sutis, estando em primeiro plano, como a psique está à sua expressão corpórea. Agora, no homem antigo, dado a mencionada diferença na qualificação de suas faculdades fantásticas, era possível uma percepção simbólica de tais forças. As forças da natureza, de igual modo que agindo sobre os órgãos dos sentidos, produzem uma percepção dotada de valores de compreensão objetiva e esses, por sua vez, agindo sobre a fantasia do homem antigo, produziam uma visão, ou imagem, ou representação fantástica que possuía igualmente um valor de compreensão objetiva sui generis. Surgiam então formas simbólicas que traduziam figurativamente um contato com o aspecto interno das forças da natureza. O arbitrário aqui se limitava à expressão, à imagem porque era símbolo: mas tudo isso não surgia nem do nada e nem do puro arbítrio: como no mencionado caso do sonho, uma percepção real, objetiva, contudo, confusa, constituía sua base e sua causa. E aquele que tivesse a faculdade de ver o sentido superior – esse é o tipo antigo de Sábio, de Vidente, de iniciado – poderia facilmente captar diretamente o sentido daquilo que se ocultava por detrás de tais revestimentos fantásticos e simbólicos assim como, no exemplo adotado, a pessoa desperta que visse o sonho com o terremoto ou o tiro de canhão se daria conta imediatamente de ser aquele sonho, a tradução simbólico-fantástica do barulho, obscuramente percebido, da queda da cadeira.

O ponto crucial aqui consiste em reconhecer o erro da chamada teoria naturalística, segundo a qual, tudo aquilo que é mito, lenda, fantasia, simbologia do homem antigo, não passava da tradução fantástica daqueles puros fenômenos naturais físicos que hoje são comumente conhecidos com os sentidos corpóreos. Não: a tradução fantástica tomava, em vez disso, os movimentos daquilo que está por detrás dos fenômenos naturais físicos, ou seja, de uma realidade que, embora seja tão positiva e objetiva quanto esses, hoje é dogmaticamente negada por aquilo que se concordou em chamar de ciência, pelo fato de que a faculdade de fazer contato com tal realidade, faculdade normal no homem das idades arcaicas, hoje está perdida e não sobrevive senão esporadicamente e confusamente.

Segundo esse ponto de vista tradicional, o conhecimento da natureza própria aos modernos, ou seja, aquele científico-experimental, não é, portanto, em nada, a superação daquela sua fase infantil e fantástica, que estaria a mitologia e a simbologia dos antigos. Aquilo que o homem antigo percebia, media e às vezes até mesmo via com a sua diferente sensibilidade fantástica, se referia na verdade a uma ordem diversa: não eram devaneios, nem poesia pré-científica, mas um dado imediato de uma outra experiência, que se interpunha espontaneamente entre a trama daqueles que os sentidos físicos se revelam quase a formá-la por completo e de maneira integral.


Considerando assim, tudo aquilo que no mundo antigo é patrimônio, digamos assim, do fantástico, não é em nada um “estado superado”. Como uma ganga de aparência desprezível, oculta em um metal precioso, assim aquele patrimônio contém oculto em estado latente, um conhecimento superior, absolutamente irredutível a uma medida que, tanto hoje ou em qualquer momento do futuro, aos modernos convenha chamar de “ciência”, tratando-se então aqui de uma diferença de qualidade e de plano. Superar o preconceito já citado e começar a pressentir tais horizontes é uma condição necessária, de fato, para que o estudo de nossas origens e do nosso passado não se reduza a um estudo de cadáveres e sua exumação não termine, por muitas vezes, de mera retórica.