Tradução e Adaptação
para o português: André Otávio Assis Muniz
Mostramos, em um capítulo precedente, até que ponto estão
desprovidas de fundamento as ideias de alguns vulgarizadores que pretendem que
a física ultramoderna tenha superado o estado materialista e que tenha se
orientado para uma nova visão espiritualista da realidade. As pretensões do que
pode chamar-se neo-espiritualismo se
fundamentam sobre um erro análogo.
Outros meios também desejariam desembocar na mesma conclusão, ou seja,
que um retorno à espiritualidade se anuncia através da atual proliferação de tendências
para o sobrenatural e o suprassensível manifestadas em movimentos, seitas,
capelas, lojas e conciliábulos de todo tipo, alimentando-se em comum com a
ambição de prover o homem ocidental de algo além das formas dogmáticas e
institucionalizadas da religião, consideradas insuficientes e ineficazes, e
conduzir-lhe mais além do materialismo.
Aqui também se trata de uma ilusão devida à falta de
princípios que caracteriza a nossos contemporâneos. A verdade é que, na maioria
destes casos, encontramo-nos diante de fenômenos que formam parte dos processos
dissolutivos da época e que, existencialmente, apesar das aparências, têm um
sentido negativo e representam uma contrapartida solidária do materialismo
ocidental.
Para conhecer a verdade e o sentido deste novo
espiritualismo, podemos referir-nos ao que Oswald Spengler escreveu sobre a
“segunda religiosidade”. Em sua principal obra, esse autor expõe ideias que,
apesar de estarem misturadas com graves conclusões e divagações pessoais de
todo tipo, reproduzem, em parte, a concepção tradicional da História, quando
fala de um processo que, nos diferentes ciclos de civilização, conduz da forma
de vida orgânica das origens, onde dominam, pelo contrário, o intelecto
abstrato, à economia e às finanças, ao espírito prático e o mundo das massas,
com um fundo de grandeza puramente material. O processo terminal foi estudado
mais de perto por René Guénon, o qual, empregando uma imagem da evolução da
vida dos organismos, falou de duas fases, a fase de rigidez do corpo abandonado
pela vida (correspondente em termos de civilização, ao período do
materialismo), seguida da fase final, a da decomposição do cadáver.
Segundo Spengler, a “segunda religiosidade” é um dos
fenômenos que acompanham sempre as fases terminais de uma civilização. A margem
de estruturas de uma grandeza bárbara, a margem do racionalismo, do ateísmo
prático e do materialismo, se manifesta formas de espiritualidade e de
misticismo, por assim dizer, erupções do suprassensível que não são sinais de
uma recuperação, mas os sintomas de uma desintegração. Não se trata já da
religião das origens, das formas severas que, como herança das elites
dominantes, estavam no centro de uma civilização orgânica e qualitativa (o que,
propriamente, chamamos o “mundo da Tradição”) e que marcavam todas as suas
expressões. Em tal fase, inclusive as verdadeiras religiões perdem toda a
dimensão superior, se secularizam, se adormecem, cessam de cumprir sua função
original. A “segunda religiosidade” se desenvolve fora destas, frequentemente,
inclusive contra elas, mas o faz também fora das correntes predominantes da
existência e corresponde geralmente a um fenômeno de evasão, alienação,
compensação confusa, não tendo nenhuma repercussão séria sobre a realidade, que
atualmente é uma civilização apagada, mecanizada e puramente terrestre. Tal é o
lugar e o sentido da “segunda religiosidade”. Podemos completar o esquema
remetendo-nos a René Guénon, cuja doutrina é muito mais profunda que a de
Spengler. Este autor constatou que depois do materialismo e do “positivismo” do
século XIX que haviam conseguido isolar o homem daquilo que está
verdadeiramente por cima dele – do verdadeiramente sobrenatural, da
transcendência – numerosas correntes do século XX têm tido uma aparência de
“espiritualismo” ou se apresentam como uma “nova psicologia”, tendendo a
abri-lo ao que está por baixo dele, por baixo do nível existencial,
correspondente geralmente à pessoa humana realizada. Poderíamos fazer
referência, aqui também, a uma expressão de Aldous Huxley e falar de uma “auto
transcendência descendente” oposta à “auto transcendência ascendente”.
Da mesma forma que é certo que o ocidente se encontra
atualmente na fase sem alma, coletivizada e materializada, própria do fim de
uma civilização, igualmente, não cabe dúvida de que a maior parte dos fatos que
se consideram como o prelúdio de uma nova espiritualidade dependem simplesmente
de uma “segunda religiosidade” e representam algo híbrido, dissolúvel e
subintelectual. São como os fogos fátuos que se manifestam quando um cadáver se
decompõe; portanto, devemos ver nestas tendências, não o oposto à civilização
crepuscular de hoje em dia, senão uma de suas contrapartidas que poderiam,
inclusive, se se confirmassem, ser o prelúdio de uma fase regressiva e
dissolvente mais avançada. Em particular, ali onde não se trata só de simples
estados de alma ou de teorias, senão ali onde o interesse mórbido pelo
sensacional e o oculto se acompanha de práticas evocatórias e de uma abertura
das capas subterrâneas da psique humana – como sucede frequentemente no caso do
espiritismo e da psicanálise – podendo-se falar, com René Guénon, de “fissuras
na grande muralha”, de perigosas fendas neste círculo de proteção que preserva,
apesar de tudo, na vida ordinária, a todo indivíduo normal e de espírito
lúcido, contra a ação das forças obscuras reais, ocultas atrás da fachada do
mundo dos sentidos e sob o umbral dos pensamentos humanos formados e
conscientes. Deste ponto de vista, o neo-espiritualismo
aparece, pois, mais perigoso todavia que o materialismo ou o positivismo, já
que este, por seu primitivismo e sua miopia intelectual, reforçava este
círculo, que limitava certamente, mas que também protegia.
Por outra parte, nada indica melhor o nível em que se
situa o neo-espiritualismo que a
qualidade humana de bom número dos que o cultivam. Enquanto que as ciências
sagradas eram a prerrogativa de uma humanidade superior, das castas reais e
sacerdotais, hoje, são em sua grande maioria, médiuns, “magos” de bairro,
radiestesistas, espiritualistas, antropósofos, astrólogos e videntes, anúncios
publicitários, teosofistas, curandeiros, vulgarizadores de um yoga
americanizado etc., os que proclamam o novo verbo anti-materialista
acompanhando-se de algum místico exaltado e visionário e de algum profeta
improvisado. A mistificação e a superstição se mesclam quase constantemente no neo-espiritualismo do qual outra
característica significativa é a proporção importante de mulheres (fracassadas,
desviadas, “fora de uso”) que se dedicam a ele, particularmente nos países
anglo-saxões. De fato, como orientação geral, pode falar-se de “espiritualidade
feminina”.
Mas se trata, uma vez mais, de um tema que numerosas
vezes tivemos ocasião de falar. No marco do problema que nos interessa
particularmente aqui, só importa a lamentável confusão que pode nascer das
frequentes referências que faz o neo-espiritualismo,
a partir do teosofismo anglo-indiano, a certas doutrinas pertencentes ao que
chamamos o mundo da Tradição, particularmente em suas formas orientais.
É importante assinalar aqui uma clara separação. É
preciso saber que se trata quase sempre de falsificações destas doutrinas,
resíduos ou fragmentos, misturados com os piores preconceitos ocidentais e
meras divagações pessoais. O neo-espiritualismo
não tem, em geral, nenhuma noção do plano ao qual pertenciam as ideias que
adotou, assim como da meta verdadeira que tinham seus seguidores, com efeito,
estas ideias acabam, frequentemente, servindo de simples substitutos destinados
a satisfazer exigências idênticas às quais as que movem a outros para a fé ou a
simples religião: grave equívoco, pois se trata, ao contrário, de metafísica e,
frequentemente, estes ensinamentos pertenciam exclusivamente, no mundo
tradicional, ao das “doutrinas internas”, não divulgadas. Além disso, não é
certo que a decadência e o esgotamento da religião ocidental sejam as únicas
razões que movem aos neo-espiritualistas a interessar-se nestes ensinamentos, a
difundi-los e mostra-los em público. Outras razões são que muitos deles creem
que estas doutrinas são mais “abertas” e consoladoras, que eximem das
obrigações e dos laços próprios às confissões históricas, quando o certo é que
se trata do contrário, ainda que se trate de outro tipo de laços. Temos um
exemplo típico na valorização completamente moralizante, humanitária e
pacifista que se fez e se faz recentemente da doutrina budista (segundo o
Pandit Nehhru: “Se deveria escolher entre a bomba H e o Budismo”). De outro
lado, vemos a Jung “valorizar” em termos de psicanálise todo tipo de
ensinamentos e de símbolos dos Mistérios, adaptando-os para o tratamento de
indivíduos neuropatas e dissociados.
É assim como poderíamos chegar a perguntar-nos em que
medida o efeito prático do neo-espiritualismo
não é negativo também a partir de outro ponto de vista em razão do inevitável
descrédito em que caem os ensinamentos pertencentes às doutrinas internas do
mundo da Tradição, depois do modo deformado e ilegítimo através do qual estas
correntes as fazem conhecer e as propagam. É preciso, com efeito, possuir uma
orientação interior muito precisa ou um instinto não menos preciso para
conseguir separar o que é positivo do negativo, para encontrar nestas correntes
a incitação a uma verdadeira união com as origens e a um redescobrimento de um
saber esquecido. E se chega-se a isso e se toma o caminho correto, não se
tardará em abandonar completamente tudo o que procede deste ponto de partida
vocacional, ou seja, do espiritualismo atual e, sobretudo, do nível espiritual
que lhe corresponde: um nível do qual estão completamente ausentes a grandeza,
o poder, o caráter severo e soberano, próprio do que se encontra mais além do
humano e que é o único que poderia abrir um caminho mais além do mundo que está
em transe e de viver a “morte de Deus”.
Isto concerne, sobretudo, ao plano da doutrina. O homem
diferenciado do qual nos ocupamos aqui que se interessar por este terreno
deveria estabelecer muito claramente a distinção que acabamos de indicar: se
não dispõe de fontes de informação mais diretas e mais autênticas que os
subprodutos e fosforescências ambíguas da “segunda religiosidade”, lhe será
preciso aplicar-se a discriminar e completar estes dados. Este trabalho será
facilitado, além do mais, pela ciência moderna das religiões e por outras
disciplinas análogas graças às quais textos fundamentais de várias religiões
estão disponíveis agora em conhecidas versões que se bem podem ver-se afetadas
pelas limitações próprias do academicismo e da especialização (filologia, orientalismo
etc) estão, ao menos, isentas das deformações, divagações e mesclas do neo-espiritualismo. Se dispõe assim da
base ou matéria-prima necessária para superar o ponto de partida inicial e
ocasional.
É preciso, além disso, examinar o problema em seu aspecto
prático. Como dissemos, o neo-espiritualismo
enfatiza frequentemente a prática e a experiência interior e toma de outro
mundo, da antiguidade ou do oriente, além de certas concepções do suprassensível,
caminhos e disciplinas tendentes à superação dos limites da consciência
ordinária do homem. Aqui também, no entanto, se volta a encontrar o erro já
assinalado a propósito dos ritos católicos que terminam por ser profanados e
perdem toda a verdadeira significação “operativa” ao ser aplicados à massa sem
que se dêem as condições necessárias para sua eficácia: o equívoco é mais grave
no caso do qual nos ocupamos, pois a finalidade é muito mais ambiciosa.
Deste ponto de vista, podemos esquecer as variantes mais
bastardas, “ocultistas”, do neo-espiritualismo,
em primeiro plano das quais se situa o interesse dedicado à “clarividência” ou
a tal ou qual pretendido “poder” e a toda espécie de pactos concluídos com o
invisível. Tudo isto não pode ser mais que absolutamente indiferente ao homem
diferenciado: não é seguindo este caminho que se pode resolver o problema do
sentido da existência, pois se permanece sempre aqui no mundo dos fenômenos, e se
pode inclusive resultar disso uma evasão e maior dispersão (parecida à que
favorece, em outro plano, a multiplicação esmagadora de conhecimentos
científicos e de meios técnicos) em lugar de um aprofundamento existencial. Mas
ainda que não seja mais que de um modo confuso, algo mais e diferente se
anuncia algumas vezes no neo-espiritualismo
quando se tende à “iniciação”, quando esta é apresentada como a culminação de
diferentes práticas, “exercícios”, ritos, técnicas de yoga etc.
Se não se pode pronunciar a este respeito uma condenação
pura e simples, é, no entanto, necessário dissipar algumas ilusões. Tomada em
sua acepção rigorosa e legítima, a iniciação corresponderia no homem à uma
mudança real do estado ontológico e existencial, à abertura efetiva da dimensão
da transcendência. Isto seria a realização indubitável e a apropriação integral
e “descondicionadora” da qualidade que temos considerado como o fundo mesmo do
tipo humano que nos interessa, do homem que está ainda arraigado,
espiritualmente, no mundo da Tradição. Assim se apresenta o problema quando uma
ou outra corrente do neo-espiritualismo
exuma e apresenta métodos e caminhos “iniciáticos”.
É preciso circunscrever este problema tendo em conta que,
no marco deste trabalho, não nos ocupamos mais que de homens distanciados de
seu meio que concentraram toda sua energia na direção da transcendência como
podem fazer o asceta ou o santo no domínio religioso. Se trata, pelo contrário,
do homem que aceita viver no mundo e em sua época, tendo, no entanto, uma forma
interior diferenciada da dos seus contemporâneos. Este homem sabe que em uma
civilização como a nossa, é impossível restaurar as estruturas que, no mundo da
Tradição, dariam um sentido ao conjunto da existência, mas, inclusive no mundo
da Tradição, o que pode fazer-se corresponder ao ideal da iniciação pertencia
aos picos, a um domínio diferenciado que comportava limites precisos, a uma via
que tinha um caráter excepcional e original. Se tratava não do nível ou da lei
geral, do alto da Tradição, que ordenava a existência comum em uma civilização
dada, mas de um plano superior, virtualmente desprendido desta mesma lei porque
estava situado em sua origem. Se pode tratar aqui as distinções que se impõe
inclusive no domínio das iniciações. Devemos limitar-nos a insistir sobre o
significado mais alto, mais essencial que toma a iniciação quando se situa
sobre o plano metafísico, significado que é, como dissemos, o do
“descondicionamento” espiritual do ser. As formas mais limitadas que
correspondem às iniciações de casta, às iniciações tribais e também às
iniciações menores ligadas a tal ou qual poder do cosmos, como em alguns pontos
e profissões antigas – formas diferentes, consequentemente, da “grande
libertação” – devem ser assim mesmo, deixadas de lado, porque no mundo moderno
estão completamente desprovidas de base.
Precisamente é em sua mais alta acepção, metafísica, como
se a compreende, e se deve pensar a priori, que em uma época como a nossa, em
um meio como este em que vivemos, e tendo em conta também à conformação
interior geral dos indivíduos (que se ressente fatalmente de uma herança
coletiva, antiga de vários séculos, que é absolutamente desfavorável), a
iniciação se apresenta como uma possibilidade mais que hipotética e aquele que
vê as coisas diferentemente, ou não compreende do que se trata, ou se equivoca
ele mesmo enganando aos demais. O que é preciso demolir da forma mais clara é a
transposição neste domínio da imagem individualista e democrática do self made man, ou seja, a ideia segundo
a qual se pode converter em “iniciado” a quem queira e que se pode sê-lo por si
mesmo graças a suas próprias forças, recorrendo a “exercícios” e práticas de
diversos tipos. Tal coisa é uma ilusão, a verdade é que com as meras forças do
indivíduo humano não se pode ir além da individualidade humana e que qualquer
resultado possível neste campo é condicionado pela presença e ação de um
genuíno poder de ordem diferente e não individual. Podemos afirmar
categoricamente que no que diz respeito à iniciação não há mais que três casos
possíveis.
O primeiro caso é o daquele que possui já, por natureza,
esta força diferente. É o caso excepcional do que foi chamado a “dignidade
natural”, que não procede do simples nascimento humano, pode comparar-se ao que
é a eleição no domínio religioso. O homem diferenciado citado aqui deve possuir
uma estrutura parecida ao tipo ao qual esta primeira possibilidade se refere.
Mas para “dignidade natural” neste específico, técnico sentido comporta uma
série de problemas que só poderão ser superados se o teste de si mesmo, citado
no capítulo 1 estiver oportunamente orientado nesta direção.
Os outros dois casos são de uma “dignidade adquirida”. Se
pode, em primeiro lugar, supor que a força em questão apareça, e que uma brusca
ruptura de nível, existencial e ontológica, se produza por ocasião de crises
profundas, traumatismos espirituais ou ações desesperadas. É então possível que
o indivíduo se não se destrói seja conduzido a participar desta força,
inclusive sem haver-se proposto conscientemente a chegar a tal fim. É preciso,
no entanto, esclarecer que, em casos deste tipo, uma energia havia sido já
acumulada e as circunstâncias provocaram sua súbita manifestação, resultando,
como consequência, uma mudança de estado: é por isso que estas circunstâncias
aparecem como uma causa ocasional, mas não determinante; necessária, mas não
suficiente. Da mesma forma que a última gota não fará transbordar o recipiente
se este não está cheio, ou a ruptura de um dique não provocaria o transbordar
das águas a não ser que as águas exerçam sobre ele uma forte pressão.
O terceiro e último caso
é aquele em que a força em questão é enxertada sobre o indivíduo em virtude da
ação de um representante de uma organização iniciática pré-existente
devidamente qualificado para fazê-lo. É o equivalente ao que no plano
religioso, é a ordenação sacerdotal que, teoricamente, ao menos, deveria
imprimir no indivíduo um caracter
indelebilis qualificando-o para realizar eficazmente os ritos. O autor que
citamos, René Guénon – que foi praticamente o único entre os autores modernos a
tratar com autoridade e seriedade estes temas – e não deixava tampouco de
denunciar os desvios, erros e mistificações do neo-espiritualismo, contempla, quase exclusivamente, esta última
possibilidade. De nossa parte, estimamos, pelo contrário, que deve ser, de
fato, praticamente excluída em nossos dias, em razão da ausência quase total de
uma organização deste tipo. Se estas organizações tiveram sempre um caráter
mais ou menos subterrâneo no ocidente em razão do tipo de religião que
predominou e das repressões e perseguições que esta exerceu, na época atual
desapareceram quase em sua totalidade. Em outros lugares, sobretudo no oriente,
se converteram, cada vez em mais raras e inacessíveis, inclusive quando as
forças que transmitiam não se haviam retirado, paralelamente ao processo geral
de degeneração e modernização, que no momento presente também invadiu estas
regiões. Como regra geral, o oriente mesmo hoje não está em condições de
facilitar mais que subprodutos, em “regime de resíduos” e basta para
convencer-se considerar a envergadura espiritual dos asiáticos que se têm
dedicado a exportar e divulgar entre nós a “sabedoria oriental”.
Se René Guénon não viu a situação com tanto pessimismo,
foi em razão de um duplo mal-entendido. O primeiro derivado do fato de que não
considerou somente a iniciação no sentido pleno e atual que acabamos de definir
e introduziu a noção de uma “iniciação virtual” que podia ter lugar sem nenhum
efeito perceptível, permanecendo inoperante em termos concretos, o que
ocorreria na quase totalidade dos casos – por fazer aqui uma nova comparação
com a religião católica: a qualidade sobrenatural dos “filhos de Deus” que o
rito do batismo concede inclusive a um recém-nascido subnormal. O segundo
mal-entendido procede da suposição de que a força em questão está realmente
transmitida inclusive quando se trata de organizações iniciáticas que em outros
tempos tiveram um caráter iniciático autêntico, mas que entraram há muito tempo
em uma fase de extrema degeneração até o ponto de que se pode pensar com razão
que o poder espiritual que constituía originalmente tal centro se retirou, não
deixando subsistir, por trás da fachada mais que uma espécie de cadáver
psíquico. Sobre estes dois pontos, não podemos seguir a Guénon; pensamos, pois,
que o terceiro caso mencionado é ainda mais improvável hoje que os outros dois.
Em relação ao homem que nos interessa, se a ideia de uma
iniciação deve igualmente figurar em seu horizonte mental, não deve ter ilusões
ao ter medido claramente a distância que separa esta do clima do neo-espiritualismo. Não deve conceber,
em princípio, como praticamente possível mais que uma orientação fundamental,
uma preparação fundamental para a qual encontrará nele uma predisposição
natural. Mas a realização deve permanecer indeterminada e será bom fazer
intervir também a visão pós niilista da vida tal como a temos definido, visão
que faz descartar todos os pontos de referência suscetíveis de provocar um
desvio, uma descentralização – inclusive se a ruptura de nível, como no caso
presente, estava ligada à espera impaciente do momento em que se produzirá, por
fim, a abertura. É neste sentido que se pode aplicar aqui a fórmula Zen já
citada; “Quem busca o Caminho se aparta do Caminho”.
Uma visão realista da situação e uma justa medida de si
mesmo, obrigam, pois, a considerar que a única tarefa séria e essencial
consiste em dar um relevo cada vez maior à dimensão, mais ou menos encoberta,
da transcendência em si. Estudos sobre o saber tradicional e o conhecimento das
doutrinas poderão ser úteis, mas somente serão eficazes com uma mudança
progressiva que afete o plano existencial e mais particularmente, a força que
está na base da vida de cada um enquanto pessoa: esta força que para a maior
parte das pessoas está ligada ao mundo e é simplesmente a vontade de viver. Este
resultado é comparável à indução do magnetismo em um pedaço de ferro – uma
indução que é também a de uma força que lhe imprime uma direção. Se poderá
então levantar o metal e movê-lo como se desejar, mas depois de oscilar por um
certo tempo e amplitude, ele sempre retornará ao ponto direcionado ao polo.
Quando a orientação para a transcendência não tiver só um caráter mental ou
emocional, mas consiga penetrar o ser da pessoa, o essencial da obra estará já
realizado, o grão terá entrado na terra e o resto constituirá algo secundário,
uma simples consequência. Todas as experiências e todas as ações que, quando se
vive no mundo, e sobretudo em uma época como a nossa, podem apresentar o
caráter de distração e estar ligadas a contingências, terão então tão pouca
importância como os deslocamentos depois dos quais a agulha imantada recupera
sua direção. Como dissemos, o que poderá eventualmente produzir-se dependerá
das circunstâncias e de uma sabedoria invisível. E a este respeito os
horizontes não se confundem com os que são próprios da existência individual e
finita que o homem diferenciado vive atualmente sobre esta terra.
Assim, deixado de lado o objetivo distante e demasiado
pretensioso de uma iniciação absoluta e real, compreendida no sentido
metafísico, inclusive o homem diferenciado deve considerar-se feliz se pode
alcançar realmente esta modificação que integra, de forma natural, os efeitos
parciais das atitudes definidas para ele, em domínios muito diferentes ao longo
desta obra.