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domingo, 19 de fevereiro de 2017

A segunda religiosidade - Julius Évola

Tradução e Adaptação para o português: André Otávio Assis Muniz
           
            Mostramos, em um capítulo precedente, até que ponto estão desprovidas de fundamento as ideias de alguns vulgarizadores que pretendem que a física ultramoderna tenha superado o estado materialista e que tenha se orientado para uma nova visão espiritualista da realidade. As pretensões do que pode chamar-se neo-espiritualismo se fundamentam sobre um erro análogo.  Outros meios também desejariam desembocar na mesma conclusão, ou seja, que um retorno à espiritualidade se anuncia através da atual proliferação de tendências para o sobrenatural e o suprassensível manifestadas em movimentos, seitas, capelas, lojas e conciliábulos de todo tipo, alimentando-se em comum com a ambição de prover o homem ocidental de algo além das formas dogmáticas e institucionalizadas da religião, consideradas insuficientes e ineficazes, e conduzir-lhe mais além do materialismo.
            Aqui também se trata de uma ilusão devida à falta de princípios que caracteriza a nossos contemporâneos. A verdade é que, na maioria destes casos, encontramo-nos diante de fenômenos que formam parte dos processos dissolutivos da época e que, existencialmente, apesar das aparências, têm um sentido negativo e representam uma contrapartida solidária do materialismo ocidental.
            Para conhecer a verdade e o sentido deste novo espiritualismo, podemos referir-nos ao que Oswald Spengler escreveu sobre a “segunda religiosidade”. Em sua principal obra, esse autor expõe ideias que, apesar de estarem misturadas com graves conclusões e divagações pessoais de todo tipo, reproduzem, em parte, a concepção tradicional da História, quando fala de um processo que, nos diferentes ciclos de civilização, conduz da forma de vida orgânica das origens, onde dominam, pelo contrário, o intelecto abstrato, à economia e às finanças, ao espírito prático e o mundo das massas, com um fundo de grandeza puramente material. O processo terminal foi estudado mais de perto por René Guénon, o qual, empregando uma imagem da evolução da vida dos organismos, falou de duas fases, a fase de rigidez do corpo abandonado pela vida (correspondente em termos de civilização, ao período do materialismo), seguida da fase final, a da decomposição do cadáver.
            Segundo Spengler, a “segunda religiosidade” é um dos fenômenos que acompanham sempre as fases terminais de uma civilização. A margem de estruturas de uma grandeza bárbara, a margem do racionalismo, do ateísmo prático e do materialismo, se manifesta formas de espiritualidade e de misticismo, por assim dizer, erupções do suprassensível que não são sinais de uma recuperação, mas os sintomas de uma desintegração. Não se trata já da religião das origens, das formas severas que, como herança das elites dominantes, estavam no centro de uma civilização orgânica e qualitativa (o que, propriamente, chamamos o “mundo da Tradição”) e que marcavam todas as suas expressões. Em tal fase, inclusive as verdadeiras religiões perdem toda a dimensão superior, se secularizam, se adormecem, cessam de cumprir sua função original. A “segunda religiosidade” se desenvolve fora destas, frequentemente, inclusive contra elas, mas o faz também fora das correntes predominantes da existência e corresponde geralmente a um fenômeno de evasão, alienação, compensação confusa, não tendo nenhuma repercussão séria sobre a realidade, que atualmente é uma civilização apagada, mecanizada e puramente terrestre. Tal é o lugar e o sentido da “segunda religiosidade”. Podemos completar o esquema remetendo-nos a René Guénon, cuja doutrina é muito mais profunda que a de Spengler. Este autor constatou que depois do materialismo e do “positivismo” do século XIX que haviam conseguido isolar o homem daquilo que está verdadeiramente por cima dele – do verdadeiramente sobrenatural, da transcendência – numerosas correntes do século XX têm tido uma aparência de “espiritualismo” ou se apresentam como uma “nova psicologia”, tendendo a abri-lo ao que está por baixo dele, por baixo do nível existencial, correspondente geralmente à pessoa humana realizada. Poderíamos fazer referência, aqui também, a uma expressão de Aldous Huxley e falar de uma “auto transcendência descendente” oposta à “auto transcendência ascendente”.
            Da mesma forma que é certo que o ocidente se encontra atualmente na fase sem alma, coletivizada e materializada, própria do fim de uma civilização, igualmente, não cabe dúvida de que a maior parte dos fatos que se consideram como o prelúdio de uma nova espiritualidade dependem simplesmente de uma “segunda religiosidade” e representam algo híbrido, dissolúvel e subintelectual. São como os fogos fátuos que se manifestam quando um cadáver se decompõe; portanto, devemos ver nestas tendências, não o oposto à civilização crepuscular de hoje em dia, senão uma de suas contrapartidas que poderiam, inclusive, se se confirmassem, ser o prelúdio de uma fase regressiva e dissolvente mais avançada. Em particular, ali onde não se trata só de simples estados de alma ou de teorias, senão ali onde o interesse mórbido pelo sensacional e o oculto se acompanha de práticas evocatórias e de uma abertura das capas subterrâneas da psique humana – como sucede frequentemente no caso do espiritismo e da psicanálise – podendo-se falar, com René Guénon, de “fissuras na grande muralha”, de perigosas fendas neste círculo de proteção que preserva, apesar de tudo, na vida ordinária, a todo indivíduo normal e de espírito lúcido, contra a ação das forças obscuras reais, ocultas atrás da fachada do mundo dos sentidos e sob o umbral dos pensamentos humanos formados e conscientes. Deste ponto de vista, o neo-espiritualismo aparece, pois, mais perigoso todavia que o materialismo ou o positivismo, já que este, por seu primitivismo e sua miopia intelectual, reforçava este círculo, que limitava certamente, mas que também protegia.
            Por outra parte, nada indica melhor o nível em que se situa o neo-espiritualismo que a qualidade humana de bom número dos que o cultivam. Enquanto que as ciências sagradas eram a prerrogativa de uma humanidade superior, das castas reais e sacerdotais, hoje, são em sua grande maioria, médiuns, “magos” de bairro, radiestesistas, espiritualistas, antropósofos, astrólogos e videntes, anúncios publicitários, teosofistas, curandeiros, vulgarizadores de um yoga americanizado etc., os que proclamam o novo verbo anti-materialista acompanhando-se de algum místico exaltado e visionário e de algum profeta improvisado. A mistificação e a superstição se mesclam quase constantemente no neo-espiritualismo do qual outra característica significativa é a proporção importante de mulheres (fracassadas, desviadas, “fora de uso”) que se dedicam a ele, particularmente nos países anglo-saxões. De fato, como orientação geral, pode falar-se de “espiritualidade feminina”.
            Mas se trata, uma vez mais, de um tema que numerosas vezes tivemos ocasião de falar. No marco do problema que nos interessa particularmente aqui, só importa a lamentável confusão que pode nascer das frequentes referências que faz o neo-espiritualismo, a partir do teosofismo anglo-indiano, a certas doutrinas pertencentes ao que chamamos o mundo da Tradição, particularmente em suas formas orientais.
            É importante assinalar aqui uma clara separação. É preciso saber que se trata quase sempre de falsificações destas doutrinas, resíduos ou fragmentos, misturados com os piores preconceitos ocidentais e meras divagações pessoais. O neo-espiritualismo não tem, em geral, nenhuma noção do plano ao qual pertenciam as ideias que adotou, assim como da meta verdadeira que tinham seus seguidores, com efeito, estas ideias acabam, frequentemente, servindo de simples substitutos destinados a satisfazer exigências idênticas às quais as que movem a outros para a fé ou a simples religião: grave equívoco, pois se trata, ao contrário, de metafísica e, frequentemente, estes ensinamentos pertenciam exclusivamente, no mundo tradicional, ao das “doutrinas internas”, não divulgadas. Além disso, não é certo que a decadência e o esgotamento da religião ocidental sejam as únicas razões que movem aos neo-espiritualistas a interessar-se nestes ensinamentos, a difundi-los e mostra-los em público. Outras razões são que muitos deles creem que estas doutrinas são mais “abertas” e consoladoras, que eximem das obrigações e dos laços próprios às confissões históricas, quando o certo é que se trata do contrário, ainda que se trate de outro tipo de laços. Temos um exemplo típico na valorização completamente moralizante, humanitária e pacifista que se fez e se faz recentemente da doutrina budista (segundo o Pandit Nehhru: “Se deveria escolher entre a bomba H e o Budismo”). De outro lado, vemos a Jung “valorizar” em termos de psicanálise todo tipo de ensinamentos e de símbolos dos Mistérios, adaptando-os para o tratamento de indivíduos neuropatas e dissociados.
            É assim como poderíamos chegar a perguntar-nos em que medida o efeito prático do neo-espiritualismo não é negativo também a partir de outro ponto de vista em razão do inevitável descrédito em que caem os ensinamentos pertencentes às doutrinas internas do mundo da Tradição, depois do modo deformado e ilegítimo através do qual estas correntes as fazem conhecer e as propagam. É preciso, com efeito, possuir uma orientação interior muito precisa ou um instinto não menos preciso para conseguir separar o que é positivo do negativo, para encontrar nestas correntes a incitação a uma verdadeira união com as origens e a um redescobrimento de um saber esquecido. E se chega-se a isso e se toma o caminho correto, não se tardará em abandonar completamente tudo o que procede deste ponto de partida vocacional, ou seja, do espiritualismo atual e, sobretudo, do nível espiritual que lhe corresponde: um nível do qual estão completamente ausentes a grandeza, o poder, o caráter severo e soberano, próprio do que se encontra mais além do humano e que é o único que poderia abrir um caminho mais além do mundo que está em transe e de viver a “morte de Deus”.
            Isto concerne, sobretudo, ao plano da doutrina. O homem diferenciado do qual nos ocupamos aqui que se interessar por este terreno deveria estabelecer muito claramente a distinção que acabamos de indicar: se não dispõe de fontes de informação mais diretas e mais autênticas que os subprodutos e fosforescências ambíguas da “segunda religiosidade”, lhe será preciso aplicar-se a discriminar e completar estes dados. Este trabalho será facilitado, além do mais, pela ciência moderna das religiões e por outras disciplinas análogas graças às quais textos fundamentais de várias religiões estão disponíveis agora em conhecidas versões que se bem podem ver-se afetadas pelas limitações próprias do academicismo e da especialização (filologia, orientalismo etc) estão, ao menos, isentas das deformações, divagações e mesclas do neo-espiritualismo. Se dispõe assim da base ou matéria-prima necessária para superar o ponto de partida inicial e ocasional.
            É preciso, além disso, examinar o problema em seu aspecto prático. Como dissemos, o neo-espiritualismo enfatiza frequentemente a prática e a experiência interior e toma de outro mundo, da antiguidade ou do oriente, além de certas concepções do suprassensível, caminhos e disciplinas tendentes à superação dos limites da consciência ordinária do homem. Aqui também, no entanto, se volta a encontrar o erro já assinalado a propósito dos ritos católicos que terminam por ser profanados e perdem toda a verdadeira significação “operativa” ao ser aplicados à massa sem que se dêem as condições necessárias para sua eficácia: o equívoco é mais grave no caso do qual nos ocupamos, pois a finalidade é muito mais ambiciosa.
            Deste ponto de vista, podemos esquecer as variantes mais bastardas, “ocultistas”, do neo-espiritualismo, em primeiro plano das quais se situa o interesse dedicado à “clarividência” ou a tal ou qual pretendido “poder” e a toda espécie de pactos concluídos com o invisível. Tudo isto não pode ser mais que absolutamente indiferente ao homem diferenciado: não é seguindo este caminho que se pode resolver o problema do sentido da existência, pois se permanece sempre aqui no mundo dos fenômenos, e se pode inclusive resultar disso uma evasão e maior dispersão (parecida à que favorece, em outro plano, a multiplicação esmagadora de conhecimentos científicos e de meios técnicos) em lugar de um aprofundamento existencial. Mas ainda que não seja mais que de um modo confuso, algo mais e diferente se anuncia algumas vezes no neo-espiritualismo quando se tende à “iniciação”, quando esta é apresentada como a culminação de diferentes práticas, “exercícios”, ritos, técnicas de yoga etc.
            Se não se pode pronunciar a este respeito uma condenação pura e simples, é, no entanto, necessário dissipar algumas ilusões. Tomada em sua acepção rigorosa e legítima, a iniciação corresponderia no homem à uma mudança real do estado ontológico e existencial, à abertura efetiva da dimensão da transcendência. Isto seria a realização indubitável e a apropriação integral e “descondicionadora” da qualidade que temos considerado como o fundo mesmo do tipo humano que nos interessa, do homem que está ainda arraigado, espiritualmente, no mundo da Tradição. Assim se apresenta o problema quando uma ou outra corrente do neo-espiritualismo exuma e apresenta métodos e caminhos “iniciáticos”.  
            É preciso circunscrever este problema tendo em conta que, no marco deste trabalho, não nos ocupamos mais que de homens distanciados de seu meio que concentraram toda sua energia na direção da transcendência como podem fazer o asceta ou o santo no domínio religioso. Se trata, pelo contrário, do homem que aceita viver no mundo e em sua época, tendo, no entanto, uma forma interior diferenciada da dos seus contemporâneos. Este homem sabe que em uma civilização como a nossa, é impossível restaurar as estruturas que, no mundo da Tradição, dariam um sentido ao conjunto da existência, mas, inclusive no mundo da Tradição, o que pode fazer-se corresponder ao ideal da iniciação pertencia aos picos, a um domínio diferenciado que comportava limites precisos, a uma via que tinha um caráter excepcional e original. Se tratava não do nível ou da lei geral, do alto da Tradição, que ordenava a existência comum em uma civilização dada, mas de um plano superior, virtualmente desprendido desta mesma lei porque estava situado em sua origem. Se pode tratar aqui as distinções que se impõe inclusive no domínio das iniciações. Devemos limitar-nos a insistir sobre o significado mais alto, mais essencial que toma a iniciação quando se situa sobre o plano metafísico, significado que é, como dissemos, o do “descondicionamento” espiritual do ser. As formas mais limitadas que correspondem às iniciações de casta, às iniciações tribais e também às iniciações menores ligadas a tal ou qual poder do cosmos, como em alguns pontos e profissões antigas – formas diferentes, consequentemente, da “grande libertação” – devem ser assim mesmo, deixadas de lado, porque no mundo moderno estão completamente desprovidas de base.
            Precisamente é em sua mais alta acepção, metafísica, como se a compreende, e se deve pensar a priori, que em uma época como a nossa, em um meio como este em que vivemos, e tendo em conta também à conformação interior geral dos indivíduos (que se ressente fatalmente de uma herança coletiva, antiga de vários séculos, que é absolutamente desfavorável), a iniciação se apresenta como uma possibilidade mais que hipotética e aquele que vê as coisas diferentemente, ou não compreende do que se trata, ou se equivoca ele mesmo enganando aos demais. O que é preciso demolir da forma mais clara é a transposição neste domínio da imagem individualista e democrática do self made man, ou seja, a ideia segundo a qual se pode converter em “iniciado” a quem queira e que se pode sê-lo por si mesmo graças a suas próprias forças, recorrendo a “exercícios” e práticas de diversos tipos. Tal coisa é uma ilusão, a verdade é que com as meras forças do indivíduo humano não se pode ir além da individualidade humana e que qualquer resultado possível neste campo é condicionado pela presença e ação de um genuíno poder de ordem diferente e não individual. Podemos afirmar categoricamente que no que diz respeito à iniciação não há mais que três casos possíveis.
            O primeiro caso é o daquele que possui já, por natureza, esta força diferente. É o caso excepcional do que foi chamado a “dignidade natural”, que não procede do simples nascimento humano, pode comparar-se ao que é a eleição no domínio religioso. O homem diferenciado citado aqui deve possuir uma estrutura parecida ao tipo ao qual esta primeira possibilidade se refere. Mas para “dignidade natural” neste específico, técnico sentido comporta uma série de problemas que só poderão ser superados se o teste de si mesmo, citado no capítulo 1 estiver oportunamente orientado nesta direção.
            Os outros dois casos são de uma “dignidade adquirida”. Se pode, em primeiro lugar, supor que a força em questão apareça, e que uma brusca ruptura de nível, existencial e ontológica, se produza por ocasião de crises profundas, traumatismos espirituais ou ações desesperadas. É então possível que o indivíduo se não se destrói seja conduzido a participar desta força, inclusive sem haver-se proposto conscientemente a chegar a tal fim. É preciso, no entanto, esclarecer que, em casos deste tipo, uma energia havia sido já acumulada e as circunstâncias provocaram sua súbita manifestação, resultando, como consequência, uma mudança de estado: é por isso que estas circunstâncias aparecem como uma causa ocasional, mas não determinante; necessária, mas não suficiente. Da mesma forma que a última gota não fará transbordar o recipiente se este não está cheio, ou a ruptura de um dique não provocaria o transbordar das águas a não ser que as águas exerçam sobre ele uma forte pressão.
            O terceiro e último caso é aquele em que a força em questão é enxertada sobre o indivíduo em virtude da ação de um representante de uma organização iniciática pré-existente devidamente qualificado para fazê-lo. É o equivalente ao que no plano religioso, é a ordenação sacerdotal que, teoricamente, ao menos, deveria imprimir no indivíduo um caracter indelebilis qualificando-o para realizar eficazmente os ritos. O autor que citamos, René Guénon – que foi praticamente o único entre os autores modernos a tratar com autoridade e seriedade estes temas – e não deixava tampouco de denunciar os desvios, erros e mistificações do neo-espiritualismo, contempla, quase exclusivamente, esta última possibilidade. De nossa parte, estimamos, pelo contrário, que deve ser, de fato, praticamente excluída em nossos dias, em razão da ausência quase total de uma organização deste tipo. Se estas organizações tiveram sempre um caráter mais ou menos subterrâneo no ocidente em razão do tipo de religião que predominou e das repressões e perseguições que esta exerceu, na época atual desapareceram quase em sua totalidade. Em outros lugares, sobretudo no oriente, se converteram, cada vez em mais raras e inacessíveis, inclusive quando as forças que transmitiam não se haviam retirado, paralelamente ao processo geral de degeneração e modernização, que no momento presente também invadiu estas regiões. Como regra geral, o oriente mesmo hoje não está em condições de facilitar mais que subprodutos, em “regime de resíduos” e basta para convencer-se considerar a envergadura espiritual dos asiáticos que se têm dedicado a exportar e divulgar entre nós a “sabedoria oriental”.   
            Se René Guénon não viu a situação com tanto pessimismo, foi em razão de um duplo mal-entendido. O primeiro derivado do fato de que não considerou somente a iniciação no sentido pleno e atual que acabamos de definir e introduziu a noção de uma “iniciação virtual” que podia ter lugar sem nenhum efeito perceptível, permanecendo inoperante em termos concretos, o que ocorreria na quase totalidade dos casos – por fazer aqui uma nova comparação com a religião católica: a qualidade sobrenatural dos “filhos de Deus” que o rito do batismo concede inclusive a um recém-nascido subnormal. O segundo mal-entendido procede da suposição de que a força em questão está realmente transmitida inclusive quando se trata de organizações iniciáticas que em outros tempos tiveram um caráter iniciático autêntico, mas que entraram há muito tempo em uma fase de extrema degeneração até o ponto de que se pode pensar com razão que o poder espiritual que constituía originalmente tal centro se retirou, não deixando subsistir, por trás da fachada mais que uma espécie de cadáver psíquico. Sobre estes dois pontos, não podemos seguir a Guénon; pensamos, pois, que o terceiro caso mencionado é ainda mais improvável hoje que os outros dois.
            Em relação ao homem que nos interessa, se a ideia de uma iniciação deve igualmente figurar em seu horizonte mental, não deve ter ilusões ao ter medido claramente a distância que separa esta do clima do neo-espiritualismo. Não deve conceber, em princípio, como praticamente possível mais que uma orientação fundamental, uma preparação fundamental para a qual encontrará nele uma predisposição natural. Mas a realização deve permanecer indeterminada e será bom fazer intervir também a visão pós niilista da vida tal como a temos definido, visão que faz descartar todos os pontos de referência suscetíveis de provocar um desvio, uma descentralização – inclusive se a ruptura de nível, como no caso presente, estava ligada à espera impaciente do momento em que se produzirá, por fim, a abertura. É neste sentido que se pode aplicar aqui a fórmula Zen já citada; “Quem busca o Caminho se aparta do Caminho”.
            Uma visão realista da situação e uma justa medida de si mesmo, obrigam, pois, a considerar que a única tarefa séria e essencial consiste em dar um relevo cada vez maior à dimensão, mais ou menos encoberta, da transcendência em si. Estudos sobre o saber tradicional e o conhecimento das doutrinas poderão ser úteis, mas somente serão eficazes com uma mudança progressiva que afete o plano existencial e mais particularmente, a força que está na base da vida de cada um enquanto pessoa: esta força que para a maior parte das pessoas está ligada ao mundo e é simplesmente a vontade de viver. Este resultado é comparável à indução do magnetismo em um pedaço de ferro – uma indução que é também a de uma força que lhe imprime uma direção. Se poderá então levantar o metal e movê-lo como se desejar, mas depois de oscilar por um certo tempo e amplitude, ele sempre retornará ao ponto direcionado ao polo. Quando a orientação para a transcendência não tiver só um caráter mental ou emocional, mas consiga penetrar o ser da pessoa, o essencial da obra estará já realizado, o grão terá entrado na terra e o resto constituirá algo secundário, uma simples consequência. Todas as experiências e todas as ações que, quando se vive no mundo, e sobretudo em uma época como a nossa, podem apresentar o caráter de distração e estar ligadas a contingências, terão então tão pouca importância como os deslocamentos depois dos quais a agulha imantada recupera sua direção. Como dissemos, o que poderá eventualmente produzir-se dependerá das circunstâncias e de uma sabedoria invisível. E a este respeito os horizontes não se confundem com os que são próprios da existência individual e finita que o homem diferenciado vive atualmente sobre esta terra.
            Assim, deixado de lado o objetivo distante e demasiado pretensioso de uma iniciação absoluta e real, compreendida no sentido metafísico, inclusive o homem diferenciado deve considerar-se feliz se pode alcançar realmente esta modificação que integra, de forma natural, os efeitos parciais das atitudes definidas para ele, em domínios muito diferentes ao longo desta obra.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A corrente de ouro rompida: Como uma tradição é perdida


André Otávio Assis Muniz

I. Introdução

Tratar de como uma tradição é perdida ou por qual modo não mais há a transmissão de um ensinamento ou de poderes tradicionais, é tema complexo e bastante controverso. Para uma completa apreciação do tema, é necessária a compreensão adequada da terminologia empregada e dos conceitos envolvidos. O presente texto é apenas um sumário, um resumo que tem por objetivo a demonstração de ideias fundamentais sobre o tema.

II. Tradição e tradições

A palavra “tradição” deriva de “tradere”, transmitir. Sendo assim, tradição é algo transmitido desde um tempo imemorial. Ainda que certas formas sejam reconhecíveis como próprias de um período histórico determinado, ou que sejam conhecidas as personalidades que fizeram parte dessa transmissão, as raízes de tais ensinamentos, suas características fundamentais e essenciais se perdem na noite dos tempos tendo uma origem supra-humana, intangível, metafísica.
Deve ficar claro que só pode ser legitimamente tradicional o que, sendo transmitido no tempo, está além do tempo, tendo em vista que a criação de algo determina que aquilo que é criado não tenha sido transmitido desde sempre.
Dito isso, podemos concluir que é impossível se criar uma tradição legítima ou ainda se denominar como “tradicional” a algo que foi, em essência, ou seja, em seus fundamentos últimos, inventado e transmitido por alguém, ainda que se trate de uma invenção muito antiga.
As formas tradicionais são invólucros tangíveis da Tradição e só podem ser classificadas como legitimamente tradicionais se assim forem.
A Tradição é una, como não poderia deixar de ser, tendo em vista que a Verdade Absoluta é uma só. Não pode haver um “absoluto” que comporte quaisquer relatividades ou inconsistências. No entanto, essa mesma Verdade Absoluta se manifesta na história humana em conformidade com o próprio estado humano, ou seja, condicionado e limitado. Sendo assim, a Tradição se manifesta, mais ou menos plena, em formas tradicionais que são condicionadas ao tempo, ao espaço e às demais vicissitudes humanas. Disso podemos concluir que as tradições, de forma mais ou menos limitada, manifestam a Tradição.
Nas linhagens legitimamente tradicionais, onde são conhecidas as origens históricas formais e as personagens envolvidas na transmissão, é preciso ter bem claras as diferenças entre aquilo que se originou nos costumes de um dado período histórico em uma determinada região geográfica e aquilo que é legitimamente tradicional, ou seja, o que não depende da forma ou das vicissitudes para existir.
Em outras palavras, aquilo que é legitimamente tradicional é perene e universalmente válido. Não está atrelado a uma determinada forma dada ou a um tempo específico. Tradição não é passado, não é o mesmo que conservadorismo da forma, saudosismo etc.

III. Transmissão e linhagens

Denomina-se comumente de “linhagem” a uma determinada sequência de transmissores de um ensinamento ou de poderes tradicionais.
Detentores de uma linhagem são indivíduos que absorveram completamente os ensinamentos de uma determinada tradição e, portanto, estão aptos a transmiti-la. Essa absorção não é meramente o acúmulo de teorias, mas a transformação completa da individualidade em acordo com os ensinamentos daquela tradição. Nesse sentido, há uma transformação do que é meramente individual e particular em algo que participa da universalidade característica da Tradição. De fato, a originalidade e as particularidades do indivíduo são ofuscadas pela força do que é absoluto.
O indivíduo se torna, por assim dizer, um elo da “aurea catena” (corrente de ouro), que conecta à Fonte Absoluta, a Verdade e a Sabedoria em todo seu esplendor.
Aqui deve ficar claro um ponto: Um rito qualquer, um título dado, uma certificação por escrito (diploma, patente) que nomeie a alguém como detentor de uma linhagem não é suficiente, em si mesmo, para validar o fato.  O rito e os documentos são maneiras de se proclamar e de se dotar de poder a um determinado indivíduo que se tornou um porta-voz daquela tradição diante de uma comunidade. O indivíduo deve ter se tornado a personificação de uma tradição para que haja validade em sua proclamação como um detentor da linhagem. Não é o rito que confere essa condição, nem o diploma, nem um grau formal.
As influências espirituais de um rito precisam encontrar recipiendários adequados para a produção de seus frutos. Lançar sementes no concreto ou no ácido não trarão brotos.
Diferentemente de quando o indivíduo recebe graus iniciais ou intermediários de maneira ritual para, depois, tomar posse efetiva desse grau com sua interiorização e prática, a proclamação de alguém como sendo um chefe tradicional ou um representante da tradição, detentor da linhagem, é o reconhecimento de que, de fato, toda uma cadeia de ensinamentos está concentrada em um indivíduo e que, portanto, é dever dos que se vinculam a esta tradição segui-lo e obedecê-lo. O conteúdo de um rito nesse sentido é o de desenvolver e efetivar seu poder como chefe tradicional, ou seja, colocar em ato tudo aquilo que já traz em si como potência.
O indivíduo recebe o poder porque é grande, não é grande por ter recebido poder.
Não se invertam as coisas! Uma das marcas mais evidentes de decadência espiritual é a concessão de graus e poderes a indivíduos sem qualificação para tal. No caso de chefias tradicionais, a situação se torna ainda mais grave por “envenenar a nascente”.
Apenas o conhecimento teórico, cerebral, não é suficiente para se considerar que alguém é detentor de uma linhagem tradicional. Para conhecer de fato a validade de uma tradição é preciso vivenciá-la de maneira completa, com todo o seu ser, de maneira que não haja discrepância entre o que é individual e o que ensina aquela tradição. Dessa forma, o detentor legítimo pode tirar de si mesmo, de sua própria vida e experiência, exemplos e ensinamentos que estão em completo acordo com a tradição e adaptá-los às inumeráveis e sempre mutantes circunstâncias da vida real cotidiana. Em sânscrito, a palavra para mestre é “acárya” (pronuncia-se atchária), ou seja, aquele que ensina por acára (pronuncia-se atchára), pela prática e pelo exemplo de conduta.
A vivência em acordo com os ensinamentos tradicionais é essencial para que haja a completa absorção e o profundo conhecimento dos mesmos. Os pensamentos influenciam os atos e os atos influenciam os pensamentos. Não há separação entre mente e corpo, entre pensamento e conduta. A vida intelectual verdadeira, em sua mais alta acepção, não é outra coisa que a própria vida espiritual.
O poder de transmitir uma tradição depende de diversos fatores. Pode haver transmissões parciais e também transmissões coletivas e, igualmente, todas podem ser perdidas com a ruptura das linhagens.

IV. Transmissão individual e transmissão coletiva

A transmissão individual se opera pela correta e completa absorção de uma tradição por parte de um indivíduo que, assim, se torna apto a transmiti-la a outrem, numa cadeia de sucessão do tipo “mestre-discípulo”. Em geral, transmissões tradicionais religiosas seguem esse padrão. Já no caso da Maçonaria, por exemplo, temos uma transmissão coletiva que é conferida por mandato.
Tomando como exemplo a Igreja Católica Romana e as Igrejas Ortodoxas Orientais, temos a transmissão do poder sacerdotal e do depósito da fé através da formação teológica e da imposição das mãos que, através de rito CORRETO, ou seja, que não comporte ensinamentos desviados, confere a autoridade sacramental, o poder de santificar, ensinar e governar a igreja. O candidato a receber tal transmissão, conferida pelo sacramento da Ordem, deve ser preparado para que se torne um vaso adequado às influências espirituais que receberá.
No caso da Maçonaria, uma assembleia de maçons, regularmente iniciados e constituídos em uma Loja, ou seja, em uma comunidade onde se praticam os ritos maçônicos, transmitem a condição de maçom, ou seja, a Iniciação, a um indivíduo que não tem essa condição (o “profano”). Essa transmissão coletiva, tendo em vista que se dá sem uma série de elementos presentes na transmissão individual (convivência entre mestre e discípulo, avaliação de circunstâncias particulares do discípulo, formação prévia, a supervisão próxima sobre a conduta do iniciado etc.), dá-se, quase que exclusivamente, através do rito.
A preparação prévia do candidato é substituída pela chamada “sindicância”, ou seja, pela verificação das condições do indivíduo em se tornar receptor da iniciação.
A validade dos ritos depende de alguns fatores , tanto em um caso quanto em outro.
No caso das transmissões individuais, a utilização do rito é variável. De acordo com os Evangelhos, Jesus não praticou nenhum “rito” propriamente dito para a transmissão do poder de santificar, ensinar e governar a Igreja. Da mesma forma, a imposição das mãos por parte dos apóstolos, ao que tudo indica, não seguia um padrão pré-definido e uniforme. A maior relevância estava na correta transmissão do “depósito da fé” e na doutrina recebida e transmitida pelos apóstolos. O poder apostólico é dependente disso.
Ao longo dos séculos, as diversas igrejas foram desenvolvendo ritos diferentes para a transmissão do poder sacerdotal e do depósito da fé. De fato, na Igreja Oriental, por exemplo, observam-se as diferenças entre os ritos Bizantino, Copta, Siríaco, Armênio, Etíope etc., enquanto na Igreja Latina há o rito Romano (Tridentino), Ambrosiano, Hierosolimitano (Carmelita), Galicano, Monástico etc. O importante é que nenhum desses ritos contenha elementos que desviem ou desnaturem a tradição transmitida pois, nesse caso, a ordenação estaria invalidada.
Da mesma maneira, um rito de ordenação pode ser completamente invalidado se não houver a intenção correta por parte do ordenante ou do ordenado.
Mesmo alguém validamente ordenado pode perder todos os seus poderes e ser reduzido ao estado de leigo se quebrar seus vínculos interiores com a doutrina transmitida.
Cabe aqui lembrar que o bispo, aquele que tem o poder de ordenar nas igrejas cristãs tradicionais, tem papel similar ao do “detentor da linhagem”, ou seja, deve ser, ipso facto, a personificação dos ensinamentos de sua tradição.  A validade de seu poder episcopal depende da guarda da tradição. Bispo herege não é bispo, independentemente de ter recebido a ordenação ritual de forma válida.
No caso de certas tradições orientais como o Hinduísmo e o Budismo, a forma da transmissão varia muito de acordo com o mestre, mas, uma vez mais, a ênfase se encontra na correta intenção e na correta transmissão da doutrina tradicional. Falar em “detentor da linhagem” com desvio da doutrina correta, com base meramente na participação de um ritual, é o mesmo que dizer que alguém se tornou monge por ter encenado uma tonsura monástica numa peça de teatro.
No caso de transmissão coletiva, como é o caso da Maçonaria, a validade de uma Iniciação repousa na correta intenção do candidato, na condição maçônica efetiva dos oficiais no rito de iniciação, na correta intenção da assembleia (a Loja) e na correta execução do rito, ou seja, que ele contenha todos os símbolos e narrativas essenciais para a transmissão da doutrina a ser transmitida. Da mesma forma que no caso anterior, ninguém se torna maçom por participar de uma encenação onde se realiza um simulacro de iniciação, mesmo que o simulacro siga os detalhes do ritual real.

V. Transmissão completa e transmissão parcial

Elementos de uma determinada tradição são comumente transmitidos de maneira parcial e gradual. A transmissão completa de todos os elementos componentes de uma tradição é um trabalho para ser concluído em anos de dedicação e esforço.
As iniciações menores, preliminares ou os sacramentos e ordenações que não conferem ao recipiendário o reconhecimento e o poder de ser um detentor da linhagem são exemplos dessas transmissões parciais.
Uma parcela de conhecimento e de poder é transmitida, mas ela não confere ao receptor o domínio do todo. Longe disso.
Nas igrejas cristãs tradicionais, os clérigos de Ordens Menores (Ostiário, Leitor, Acólito e Exorcista) e os três primeiros graus das Ordens Maiores (Subdiácono, Diácono e Presbítero) não são tidos como “detentores” do poder apostólico, mas sim participantes dele através de sua ligação com o bispo (plenitude da Ordem). Sendo assim, pode-se dizer que receberam uma transmissão parcial da tradição.
Da mesma forma no Budismo, os diversos graus representados na comunidade monástica, indicam essa jornada rumo a uma transmissão completa que se dá lentamente através de transmissões parciais progressivas.
Os graus efetivos da Iniciação são, em si mesmo, inumeráveis. Os graus demonstram as etapas no caminho e, portanto, revelam partes da totalidade representada por uma tradição.

“os graus intermediários da Iniciação podem ser até mesmo em multiplicidade indefinida, e deve ficar claro que os graus que existem em uma Organização Iniciática não constituem senão uma espécie de classificação mais ou menos genérica e “esquemática”, limitada à consideração de certas etapas principais ou mais claramente definidas, o que, por outro lado, explica a diversidade destas classificações. É também evidente que, mesmo quando uma Organização Iniciática, por uma razão qualquer de “método”, não confere graus claramente diferentes e demarcados por ritos particulares a cada um (dos graus), isso não impede que as mesmas fases (iniciáticas) existam obrigatoriamente para quem esteja vinculado a tal organização, ao menos quando passam à Iniciação Efetiva, pois não há nenhum método que permita alcançar diretamente o Objetivo.” (René Guénon  - Estudos Tradicionais,  setembro de 1950)

No caso da chamada transmissão coletiva, a detenção do conjunto de ensinamentos pertence à comunidade dos iniciados do mais alto grau, cuja função é resguardar as formas e doutrinas corretas a serem transmitidas. Tendo cada iniciado do mais alto grau recebido uma transmissão completa, mas não podendo individualmente transmiti-la de maneira regular, pela própria natureza coletiva dessa transmissão, deve resguardar os elementos da tradição para que a comunidade possa transmiti-la grau a grau, sem alterações essenciais na tradição.

VI. Os modos de transmissão no tempo e no espaço

Tratar de ensinamentos tradicionais é tratar de questões metafísicas que podem ser especialmente complexas ao homem moderno.
Quando falamos sobre a ideia de transmitir uma tradição, imediatamente associamos tal ideia  a uma relação pessoal, a encontros ou à convivência estreita e, de fato, essa é a forma mais comum, mais natural e mais desejável. No entanto, no mundo da Tradição, não é a única maneira.
Não devemos nos esquecer que a fonte da Tradição é perene e, portanto, pode manifestar-se onde e como quiser. A questão “tempo-espaço” é importante para nós, no mundo condicionado. No entanto, a “Tradição”, a “Sabedoria Perene”, está além dessas limitações.
Nas diversas tradições não são raros os exemplos de cadeias de transmissão onde há lapsos enormes de tempo e de espaço. Mestres e discípulos que nunca se encontraram pessoalmente e que nasceram e morreram com séculos de distância e em países longínquos.
Quando se fala na “aurea catena”, ou seja, da cadeia de ouro que, simbolicamente, conecta através de seus elos à fonte da Tradição, frequentemente nos deparamos com sucessores de mestres que receberam sua autoridade de maneira bem pouco usual. Tomemos um exemplo relativamente bem conhecido na história: Marsílio Ficino.
Marsílio Ficino nasceu próximo de Florença no ano de 1433, era médico e um estudioso aficionado por línguas que, graças a isso, foi notado pelo governante de fato da república florentina, Cosme de Médici. Ficino estudou grego e filosofia e, por isso, foi patrocinado por Cosme de Médici para traduzir do grego a obra de Platão. Nesse tempo, chegou às mãos do poderoso Médici, uma cópia em grego do “Corpus Hermeticus”, obra que, na sua visão, poderia revelar conhecimentos nunca antes conhecidos no Ocidente cristão. Cosme ordenou que Ficino parasse a tradução da obra de Platão e se dedicasse totalmente à tradução dos ensinamentos herméticos.
Ficino traduziu o “Corpus Hermeticus” e na sequência traduziu diversos autores neoplatônicos como Plotino, Porfírio, Jâmblico e outras obras como os “Hinos Órficos”. As traduções de Ficino são obras primas de precisão e, de fato, ele sentia a presença daqueles sábios a um tal ponto que se identificou com cada um dos ensinamentos contidos naquelas obras. Depois de 12 séculos, Ficino restaurou o costume comum entre os neoplatônicos da época de Plotino de celebrar o natalício de Platão com um banquete frugal.
Ficino era sacerdote católico romano e se esforçou muito para sintetizar a sabedoria dos antigos com o cristianismo católico romano. Sentia e afirmava que era a própria Providência Divina que o tinha destinado a ser o transmissor dessa Sabedoria Oculta. Em acordo com o pensamento tradicional da existência de uma “Sabedoria Perene”, defendia que a Verdade Universal fora transmitida sob várias roupagens através das eras e dos lugares e que tal Verdade se manifestava na vida e no pensamento de cada um dos Grandes Sábios e transmissores da Tradição, formando uma cadeia contínua de sucessão: a “aurea catena”.
Ficino sentia-se, obviamente, parte dessa corrente de ouro e, portanto, um legítimo sucessor de Zoroastro, Hermes Trismegisto, Orfeu, Pitágoras, Platão e Plotino.
Plotino faleceu em 270 da Era Comum e Ficino nasceu em 1433 da mesma Era Comum. Os dois estavam separados por “apenas” 1163 anos e, no entanto, podemos dizer que, sem sombra de dúvida, Ficino foi um sucessor e discípulo de Plotino.
Note-se aqui que a sucessão e a detenção da linhagem original dos ensinamentos por parte Ficino não dependeu de um rito que a legitimasse, tendo em vista a evidência notória da autoridade dele sobre as doutrinas herméticas e sua completa personificação das mesmas. Nesse caso, o rito tornou-se completamente dispensável, tendo em vista o contato direto com a Fonte, manifestado por certas experiências vividas por Ficino à semelhança de Plotino.
Outro exemplo que podemos utilizar de uma famosa iniciação sem qualquer rito foi a do chamado “Príncipe dos Teósofos” e “Teósofo Teutônico”, Jacob Boehme.
Jacob Boehme nasceu na Alemanha, perto da cidade de Görlitz, numa aldeia chamada Alt Seidenberg, na região conhecida como Lusatia Superior. Corria o ano de 1575 da Era Comum. A família era proprietária de terras, mas Jacob foi considerado fraco para a dura lida do campo e, por isso, aos 14 anos, depois de frequentar a escola de Alt Seidenberg, tornou-se aprendiz de sapateiro. Em 1599 foi admitido na guilda dos sapateiros como mestre-artífice e tornou-se oficialmente cidadão de Görlitz.
Boehme era um leitor voraz e profundamente interessado em religião, alquimia, hermetismo etc. Em 1600, Martim Moller, cidadão destacado de Görlitz, organizou um grupo de estudos na Paróquia Luterana local, que na prática era um tipo de irmandade chamada de “Conventículo dos Servidores Reais de Deus”, ao qual Jacob Boehme foi convidado a juntar-se. Teve uma série de visões interiores, entre elas uma em que viu os raios de sol sendo refletidos em um jarro de estanho e sentiu que aquilo representava a Iluminação mística, na qual a alma limpa refletia a Luz Divina. Tal visão foi um marco em sua busca pelos mistérios ocultos da natureza.
Durante o tempo de sua aprendizagem, quando seu mestre estava ausente na sapataria onde era aprendiz, viu entrar um homem estrangeiro, muito bem vestido, apesar da simplicidade e austeridade das vestes. O homem tinha um aspecto venerável e escolheu um determinado par de sapatos sobre o qual perguntou o preço. Boehme, julgando-se inepto para colocar um preço nos produtos na ausência de seu mestre, colocou um alto valor na certeza de que o homem recusaria e ele não seria repreendido por seu mestre. O estrangeiro, no entanto, pagou o valor sem sequer tentar pechinchar, afastando-se em seguida. Após dar alguns passos para fora da sapataria voltou-se e com voz alta e firme exclamou: “Jacob! Venha cá!”.  Boehme, a princípio, ficou assombrado com o fato do homem chamá-lo pelo nome de batismo, no entanto, passado o susto inicial, decidiu atendê-lo. O homem, do lado de fora, com ar sério e ao mesmo tempo muito cortês, disse-lhe: “Jacob, você é ainda muito pequeno, ou pouca coisa, mas você será grande e se tornará outro homem, e será objeto da admiração de todos. Isto porque você é piedoso, crê em Deus e reverencia Sua palavra, acima de tudo. Leia cuidadosamente as santas Escrituras, nas quais você encontrará consolação e instrução, pois você sofrerá muito; terá de suportar a pobreza, a miséria e as perseguições; mas seja corajoso e perseverante, pois Deus o ama e é bom para você.” Em seguida, o homem fixou-o profundamente nos olhos, apertou-lhe a mão e se foi, sem deixar qualquer indício. Boehme dizia que a fisionomia daquele homem sempre pairava diante de seus olhos.
A extrema simplicidade e informalidade de tal Iniciação revela um contraste imenso com as pompas, apetrechos, cerimônias etc., das quais hoje em dia tantos pseudo-iniciados fazem questão. Pompas vazias, sem nenhuma substância real.
O pensamento de Boehme faz eco aos ensinamentos de outros sábios, entre eles o próprio Ficino, dos quais, com toda certeza, Boehme tornou-se um digno sucessor e, por sua vez, Louis Claude de Saint-Martin, chamado de “Filósofo Desconhecido” nascido em Amboise, na França, no ano de 1743, é considerado discípulo e sucessor de Jacob Boehme, falecido em 1624, 119 anos antes, em Görlitz, na Alemanha.
Como vimos, a sucessão e a detenção de uma linhagem tradicional não está condicionada ao padrão comum, material e profano ao qual estamos habituados.

VII. Ruptura de linhagem, quebra de sucessão e perda de vínculos tradicionais

Tendo discorrido sobre os elementos fundamentais da Tradição e das tradições, as linhagens e a sua perpetuação, passemos agora a tratar sobre o que seja a ruptura de uma linhagem, a quebra de uma sucessão e a perda de vínculos tradicionais.
Quando uma determinada instituição, ordem, sociedade, comunidade etc., que é depositária legítima de uma tradição, proclama, propaga, transmite, seja através do ensino direto, seja através da distorção na interpretação, seja através da modificação dos elementos contidos nos ritos e mitos dos quais é depositária, ensinamentos novos, desviados do que foi transmitido ao longo dos séculos, não baseados nos ensinamentos basilares originais e não apoiados pela honesta e lógica exegese desses ensinamentos, perde sua vinculação com a tradição que diz representar.
Da mesma forma, deixam de ser portadores de uma linhagem tradicional e de uma sucessão tradicional aqueles que defendem condutas, pensamentos e doutrinas consideradas desviadas pelas fontes escriturísticas e pelos registros autorizados de uma tradição. Quando isso acontece, ainda que se mantenham formalidades exteriores, que haja a posse de locais ligados àquela tradição (templos, sítios históricos, locais de reunião etc.) e que se alegue uma continuidade histórica qualquer, não subsistem mais vínculos espirituais reais.
É preciso ressaltar que quando falamos aqui em “instituições” tradicionais, não estamos nos referindo somente a organismos com estatutos, normas ou formalidades legais próprias aos institutos civilmente constituídos, mas sim à toda comunidade que seja depositária de um legado autenticamente tradicional onde se encontrem portadores de uma linhagem qualquer, ainda que não haja qualquer formalidade exterior.
No caso de instituições com poder centralizado, a aderência dos portadores de linhagem aos ensinamentos desviados, emanados da autoridade central, é a própria ruptura dos vínculos tradicionais de cada um em particular.
Tomemos alguns exemplos hipotéticos para compreender a ruptura com a Tradição:
1 - Uma igreja cristã tradicional cujo chefe, um papa ou patriarca, adere publicamente a um ensinamento desviado e torna tal ensinamento “oficial”. Todos os bispos que aceitam esse ensinamento desviado rompem com os vínculos tradicionais de sua própria sucessão. Somente permanecerão verdadeiramente detentores da sucessão aqueles que negarem a adesão ao ensinamento desviado.
2 - Uma Potência Maçônica que nega um princípio universal da tradição maçônica, por exemplo, o sigilo dos sinais rituais, e começa a fazer reuniões ritualísticas completas com a presença de não-iniciados e de portas abertas. Todo maçom com a plenitude de conhecimento e de grau necessários que aceitar essa postura, está rompendo seus vínculos com a tradição maçônica.
3 - Um sistema ritualístico que altera de forma tão profunda seus rituais que não estão mais presentes os elementos fundamentais a serem transmitidos por aquele ritual. Um ritual penitencial que torna-se, por exemplo, um ritual de boa sorte. Um ritual de iniciação que não transmite mais os símbolos fundamentais daquela iniciação, mas se torna um mero discurso moralista.
4 - Um mestre budista que passa a ensinar como sendo boa conduta aquilo que as escrituras budistas consideram má conduta, como pensamento correto aquilo que as escrituras consideram ser pensamento incorreto, como meio de vida correto o que as escrituras afirmam ser meio de vida incorreto. Que afirma que uma determinada doutrina é budista sendo que tal doutrina, de fato, não consta nem no cânone de escrituras budistas, nem nos comentários dos exegetas tradicionais e que, inclusive, não pode ser deduzida a partir desses ensinamentos por qualquer método exegético racional. Todos aqueles que aderirem a esse mestre, tendo consciência do que fazem, ainda que previamente tenham tido vínculos tradicionais legítimos com o Budismo, rompem qualquer ligação verdadeira com a tradição budista.
5 - A introdução de elementos intelectuais estranhos em uma dada tradição que, pouco a pouco, faça com que os conceitos elementares desta comecem a ser compreendidos de forma equivocada. Por exemplo, de conceitos comunistas para se compreender a justiça cristã, de ideias revolucionárias para se compreender a busca por uma sociedade mais justa e civilizada da Maçonaria, de conceitos “New Age” para se compreender alguma doutrina budista, até que as ideias se tornem mescladas a tal ponto que uma evoque a outra automaticamente.
Quando se configuram tais situações ou outras de igual natureza, a Tradição subsistirá de maneira extraordinária, ou seja, fora dos meios normais para sua perpetuação.

VIII. Tradições vacantes

Um outro caso possível de desaparecimento de uma tradição ocorre quando os poucos detentores de uma determinada linhagem morrem sem transmiti-la a ninguém. Nestes casos a recuperação desta tradição só é possível se algum dos detentores da linhagem deixar por escrito o seu legado, e que tal legado contenha, ao menos, as bases fundamentais daquela tradição que permitam desenvolvimentos posteriores através de sua vivência e interpretação.
De toda forma, a recuperação e restauração de uma linhagem perdida desta maneira dependerá de uma série de fatores que estão muito além do controle e previsão humanos. Uma tradição que é passível de recuperação através de seus escritos, ou seja, existente em potência, mas não em ato, pode ser denominada de tradição vacante.

IX. Tradições inexistentes: cadeias rompidas e pseudo-tradições

Até agora tratamos de tradições reais que, por uma razão ou outra, são rompidas em um determinado momento. Agora trataremos das cadeias rompidas há tempos e das pseudo-tradições, ou tradições inexistentes, que conduzem muitas pessoas ao erro e a inumeráveis equívocos de interpretação em relação às tradições reais.
Depois de um tempo mais ou menos longo, uma tradição que foi rompida acaba por se tornar um simulacro, um espantalho que, apesar de aparentar ser real, nada mais tem de realmente vinculado à Tradição. Foi tradicional, não é mais. Neste caso, há um grave perigo para aqueles que, crendo nos sinais exteriores de continuidade (a detenção de documentos, a continuidade da posse de locais históricos vinculados àquela tradição, a imagem de venerabilidade construída em torno de pseudo-sucessores de avançada idade, o grande número de aderentes etc.), creem de boa-fé que os ensinamentos e os ritos ali praticados são as genuínas expressões daquela mesma tradição veneranda do passado, quando, na verdade, não passa de simulação.
A verificação da realidade de uma transmissão tradicional se dá através da cuidadosa análise doutrinária. As perguntas a serem feitas são: É a mesma doutrina? São os mesmos ritos? Houve adaptação? Se houve, como foi feita? Alterou elementos fundamentais?
Adaptações nos rituais, adequação a diferentes realidades, tempos, públicos etc., são muitas vezes necessárias e salutares, MAS, não pode haver alteração na essência.
“A Tradição não exclui a evolução nem o progresso; os rituais podem e devem ser alterados tantas vezes quantas sejam necessárias para adequar-se às condições variáveis de tempo e de lugar, mas, entenda-se, unicamente à medida em que estas alterações não afetem nenhum aspecto essencial. A mudança nos detalhes do ritual importa pouco desde que o ensinamento iniciático que deles se compreende não sofra nenhuma alteração.” (René Guénon. A Gnose, abril de 1910)
É óbvio que a análise desses aspectos doutrinários e ritualísticos é muito difícil para a maioria das pessoas que aderem a algum ensinamento que se pretende tradicional. Isso demonstra o quão grave é a situação e o quão difícil é a percepção dessa realidade de uma cadeia rompida ou de uma “ex tradição”.
O caso das pseudo-tradições é diferente do que falamos sobre o caso das cadeias rompidas. Uma pseudo-tradição é uma invenção, uma doutrina criada por um indivíduo ou um grupo que alega ter recebido uma “nova revelação” que contrasta com os elementos comuns da Tradição como um todo. De maneira geral, pseudo-tradições não têm quaisquer referências reais em uma cadeia de transmissão e, para suprir essa ausência, inventam suas próprias cadeias de transmissão misturando fantasias, personagens fictícios, doutrinas ilógicas, irracionais, sem embasamento filosófico e interpretações aberrantes do bom senso e de qualquer exegese séria.
As pseudo-tradições podem utilizar como “esqueleto” a alguma tradição real e existente (o Budismo ou Cristianismo, por exemplo) e, nesse “esqueleto”, ir construindo um tipo de boneco de retalhos com ideias vindas das mais diferentes fontes, ensinamentos desviados e até abertamente contraditórios àquela tradição real utilizada como estrutura. É assim que nascem as chamadas “novas religiões”, assim nasceram várias seitas desviadas do passado e também a totalidade das Ordens pseudo-esotéricas e pseudo-iniciáticas no mundo.
Em geral, ao serem indagados sobre as bases escriturísticas, históricas e os fundamentos de seus ensinamentos, apelam para o segredo, para registros reservados aos quais ninguém pode ter acesso (ninguém mesmo, uma vez que simplesmente não existem), para um tempo recuadíssimo e inverificável ou para o papel absolutamente sui-generis do fundador que, sem precisar se basear em nenhum conhecimento anterior, recebeu algo totalmente novo, especial, único, exclusivíssimo e sem precedentes. Aliás, é bem comum que esse fundador seja a “encarnação” (termo caro ao espiritualismo moderno) de alguma divindade, mestre iluminado etc.
No caso de seitas desviadas com muitos séculos, a completa falta de fundamento doutrinário vai sendo suprida com registros históricos, lendas hagiográficas, apelos à autoridade de sua respeitada “tradição” etc.
Frisemos que, nesse caso, estamos falando de um completo vazio e de uma pura e simples impossibilidade, não de algo que se perdeu ou foi rompido.
É absolutamente claro que essas pseudo-tradições nada têm de espiritualmente real a oferecer. Vendem fantasias, falsas consolações, sensações de poder e de conhecimento fictícios. Iludem a muitos que investem tempo e dinheiro para comprar “fumaça”, ou seja, títulos, graus, honrarias e segredos de polichinelo que só são valorizados pelos seus próprios confrades ou por tolos em relação ao conhecimento tradicional.

X. Restauração das tradições

Com tudo que expusemos até agora, cremos ter deixado clara a complexidade do tema e a necessidade de profundo conhecimento para se proceder uma análise segura quando se trata de ensinamentos tradicionais.
Repetimos: restauração de uma tradição rompida ou vacante depende de uma série de fatores, dentre os quais a maioria encontra-se fora do controle e da previsibilidade humanas.
O restaurador de uma tradição não é um inovador, um criador, alguém “original” ou com grande senso comercial e tino para os negócios. Ele não fará com que uma tradição restaurada se torne hours concours ou um “produto” de grande aceitação mercadológica.
Da mesma forma, não é um sonhador, um visionário que vive em estado de êxtase ou que recebe ensinamentos através de vaporosas aparições. Ao contrário, precisa estar firmemente ancorado em dados da realidade objetiva, em conhecimento efetivo, real e demonstrável da tradição que restaura. Suas experiências interiores pessoais não serão utilizadas para demonstrar a verdade da doutrina que ensina. Ao contrário, é sua própria despretensão em arvorar-se como “medida da verdade” e seu constante recurso às fontes da tradição que serão os selos de sua autenticidade.
Em outras palavras, na Tradição, as particularidades e idiossincrasias do transmissor não contam quase nada. Só sua transfiguração como veículo da Tradição é que importa. As verdades são apresentadas pela Tradição, não pela opinião particular do transmissor.
Um falso transmissor dá sua opinião pessoal e diz que aquela é a posição da doutrina que diz representar. Um verdadeiro transmissor demonstra a doutrina tradicional fazendo referência às fontes e conforma sua opinião àquele ensinamento.

XI. Conclusão

De acordo com as doutrinas tradicionais encontramo-nos em um período de profunda decadência espiritual.  As diversas tradições fazem referência a esse período de decadência por nomes diferentes: Kali-yuga na tradição hindu, Mòfa/Mappou na tradição budista Mahayana, Idade de Aço na tradição greco-romana (Hesíodo), Dushama (Dukhma)/Dushama-Dushama (Dukhma-dukhma) no Jainismo, Grande Tribulação (Thlipsis megáli) e Fim dos Tempos na tradição cristã, fitna e malahim no Islam Sunita, ghaybah no Islam Shiah etc. Essa era de decadência é marcada pela confusão, pelo obscurecimento dos centros tradicionais e pela deturpação dos ritos corretos. Obviamente que neste período a transmissão correta de toda verdadeira tradição é dificultada, e que a restauração e preservação se dão frequentemente por meios não convencionais ou ordinários.
Tradições rompidas, perdidas e pseudo-tradições estão por toda parte. Devido a todos esses fatores, a compreensão da própria natureza do correto e incorreto, do certo e do duvidoso se torna nublada.
O presente texto, um mero sumário de ideias extremamente simplificadas e resumidas, serve como um alerta àqueles que querem seguir os ensinamentos tradicionais e, dessa maneira, estar ligados à Fonte Suprema da Tradição, aquela Verdade Metafísica que está acima de qualquer categoria e classificação humana.
Se conseguirmos que uns poucos leitores tenham a atenção despertada por essas poucas páginas, já teremos plenamente atingido nosso objetivo.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

A falácia da "egrégora"

André Otávio Assis Muniz

A palavra "egrégora" surge no cenário ocultista moderno com Eliphas Levi que retirou a palavra do Livro de Enoch e lhe deu um sentido diferente.
De fato, no Livro de Enoch, um apócrifo datado entre 200 a.E.C. e I da E.C., a palavra aparece traduzida como "anjos guardiões" que teriam caído em fornicação com as mulheres humanas e essas, como fruto dessa relação com os "egrégores" teriam dado à luz a gigantes.
A passagem é a seguinte:
"Quando outrora aumentou o número dos filhos dos homens, nasceram-lhes filhas bonitas e amáveis. Os anjos (egrégores), filhos do céu, ao verem-nas, desejaram-nas e disseram entre si: "Vamos tomar mulheres dentre as filhas dos homens e gerar filhos!"
(Livro de Enoque, Cap. 6. 1)
Os tais "egrégores" eram anjos guardiães que desceram sobre o monte Hermon e o Livro de Enoque diz que eram duzentos, mas só cita o nome dos líderes.
A palavra "egrégora" e suas derivações em grego significam "vigilância", "estabelecer vigilância" etc., ou seja, eram anjos que exerciam uma função de guarda e vigilância.
Bom, o caso é que Eliphas Levi utilizou idéias de Eugène Nus ("Les Grands Mystères") quando este último, influenciado pelos círculos espíritas franceses que adotavam postulados mesmeristas, expressou a idéia de "fluído magnético", "exteriorização da motricidade" ou "exteriorização da sensibilidade". Essas teorias foram citadas pelo Dr. Gibier ("Le Spiritisme, pp.310-311) como uma das possíveis explicações para os fenômenos espíritas.
Os mesmeristas acreditavam que o corpo emitia um tipo de fluído magnético e que, a junção de vários fluídos faria um tipo de boneco do Dr. Frankenstein "magnético" ou "fluídico"...
Não é muito clara a confusão que Eliphas Levi cometeu ao dizer que o tal "fluído magnético" ou a "exteriorização da motricidade" seriam "egrégores", mas, penso eu, que ele achava que os anjos da guarda, na verdade, são exteriorizações do fluído das pessoas.
A teoria dos "fluídos" de Mesmer e o mesmerismo, de maneira geral, se provaram falsos com o avanço das pesquisas sobre o tema.
No entanto, a conversa da "egrégora" continua viva. Um escutou aqui, outro repetiu ali e pouco a pouco, virou um tipo de dogma ocultista que ninguém sabe muito bem dizer de onde veio ou quais as bases para essas afirmações.
Mostrem-me uma única escritura Tradicional que dê ao termo "egrégora" o sentido que se dá hoje e eu passarei a usá-lo com grande entusiasmo...

O Grau 7 do R.E.A.A. – Preboste e Juiz

Irm. André Otávio Assis Muniz

I. Introdução Geral

Este Grau recebeu diversos nomes em diversos manuscritos diferentes. Ele é um dos mais antigos da Maçonaria Francesa e já era conhecido em Paris desde 1.745 sob o nome de Preboste e Juiz (Prévôt et Juge). Praticado em Metz em 1.761, a antiguidade deste grau é atestada por figurar no Antigo mestrado bordelaise em 1.750 e no Rito de Perfeição e no Grande Eleito de Londres. Se encontram 3 denominações para este grau:
- Perfeito Mestre Irlandês;
- Poderoso Irlandês;
- Preboste e Juiz.
Esta última denominação do grau, a de Preboste e Juiz, faz com que tenha uma denominação dupla, contrariamente aos outros Graus de Perfeição que têm nomes únicos.
Furetière, em seu “Dictionnaire Universel” define o Preboste como um juiz subalterno de cidades e vilas. Esta definição poderá fazer pensar que a dupla designação do grau é um pleonasmo. Na Idade Média, o Preboste tinha a função da administração dos bens e das receitas de um mestre, de um senhor leigo ou eclesiástico. O “Le Dictionnaire du Moyen Âge” considera que o Preboste, além de ter poder judicial, era o representante do rei em uma determinada fração de sua propriedade. No Grau de Preboste e Juiz, no entanto, as duas funções devem ser analisadas com maior cuidado pois aparecem como coisas separadas.
O Preboste detém a chave do cofre com os planos do Templo e a urna contendo o coração de Hiram, enquanto o juiz desempenha sua função utilizando a balança para fazer seus julgamentos.
O candidato a este grau é investido de uma dupla função: ele deve fazer a justiça e é o guardião dos planos destinados aos Mestres Maçons e do coração embalsamado de Hiram.
Este grau ensina que governar e ter responsabilidades de comando implica em conhecer e agir com justiça, equidade e imparcialidade.
O ritual evoca um tribunal que fornece ao Rei Salomão o meio de restaurar a ordem necessária permitindo aos obreiros continuar a construção do Templo interrompida pela desaparição do Mestre.
O bem agir caminha junto com a vontade de uma ação leal e sincera.

II. Tema do grau

É muito importante ter em vista que os graus maçônicos têm como base a fontes diversas e que, tal origem pode deixar bastante misturados os fatos apresentados nas lendas.
Neste grau, o presidente da Loja representa Tito que, ao contrário do que é dito no ritual brasileiro à página 48, de que seria um nome sem “qualquer significado conhecido” possivelmente deriva de um patronímico romano relacionado com o latim titulus, que significa “honrado, respeitável”, ou seja, um nome simbólico para o decano dos Mestres Irlandeses, príncipe dos Harodim, ou chefes e condutores dos trabalhos em número de 3.300, que Salomão estabeleceu sobre os obreiros do Templo, em acordo com o 1º Livro dos Reis, 5, 16 (Biblia Sacra Vulgata, Liber Malachim – III Rg 5,16):

“absque praepositis qui praeerant singulis operibus numero trium milium et trecentorum praecipientum populo et his qui faciebant opus (e também prepostos em número de três mil e trezentos que comandavam as pessoas e supervisionavam o trabalho”).

Já o nome “Zadoc”, é, na verdade, uma corruptela de Tzadek ou Tzadok, que significa em hebraico, “Justo”. Sendo assim, longe de não ter “qualquer significado conhecido”, Tito Zadoc significa Justo Honrado/ Respeitado.
O ritual em uso no Brasil comete mais alguns erros grosseiros em relação ao relato bíblico. Na edição de 2.014, p.47, “A lenda do Grau 7 Preboste e Juiz”, é dito que os operários eram cerca de 3.600 e que Salomão resolveu instituir um tribunal composto de sete Prebostes e Juízes. O relato bíblico diz, no entanto, que o número de supervisores era de 3.300 e que Salomão arregimentou 30.000 trabalhadores de todo o Israel. Além desses, Salomão dispunha de 70.000 carregadores e 80.000 cortadores de pedra nas colinas. Ou seja, 183.300 envolvidos que o ritual reduz a 3.600, cometendo um erro de “apenas” 179.700 trabalhadores no total e de 3.293 prebostes...Seria interessante que os responsáveis pela ritualística do R.E.A.A. tivessem o cuidado de ler as fontes dos relatos contidos nos rituais para que fosse esclarecido, no próprio ritual, que o número 7 é simbólico, e não o número fidedigno ao que se encontra no relato bíblico. Tais inexatidões, caindo nas mãos de conhecedores da Bíblia, passam a impressão de uma Maçonaria inculta e descuidada.
No decorrer da iniciação deste grau, o candidato executa 7 viagens, ou 4, de acordo com a variação dos rituais. No coração de cada uma dessas viagens, é exposto algum meio de bem exercer a justiça. Ele é interrogado sobre a maneira que a concebe, sobre os deveres que deve preencher e sobre suas aptidões para com essa função.
Este grau é, também uma cerimônia de homenagem funerária em memória do Mestre desaparecido. Isto não acontece no ritual atual em uso no Brasil.
O tema da lenda é centrado sobre a construção do Templo relatada no Livro dos Reis e em Crônicas.
Depois da morte de Hiram, Salomão nomeia sete Prebostes e Juízes. Os prebostes são encarregados de examinar os planos elaborados pelos Arquitetos, verificando sua conformidade com os projetos elaborados pelos Grandes Mestres. As reuniões se dão na câmara do meio do Templo. Os planos dos edifícios e as contas devem ser conservados em um cofre de Ébano, cuja chave é conservada pelos Prebostes e Juízes.

III. A moral do grau

O tema moral central do grau é a JUSTIÇA, na decisão e no julgamento.
Todo aquele que é investido com o poder de julgar deve ser imparcial, sem qualquer consideração pessoal à força dos poderosos, ao suborno dos ricos, ou às necessidades dos pobres.
Em nossa época, onde superabundam as informações sem comprovação, os boatos, as intrigas públicas através das redes sociais, o grau de Preboste e Juiz ensina que o maçom deve ouvir pacientemente e pesar cuidadosamente os fatos e argumentos oferecidos. Não deve concluir nada precipitadamente, nem formular opiniões e sentenças antes de ter ouvido a todas as partes envolvidas.
Albert Pike, em sua obra “Moral and Dogma of Ancient and Accepted Scotish Rite”, ensina que nas nossas relações com os outros há dois tipos de injustiça: a primeira é a daqueles que lesam os outros e a segunda é a daqueles que podem prevenir uma lesão nos outros, feita por terceiros, mas não fazem. Dessa maneira, a injustiça ativa pode ser feita de duas formas – pela força e pela fraude, ambas absolutamente repugnantes ao deve social, sendo a fraude a mais detestável.
Outro fato que devemos ter em mente é que a injustiça pode ser reparada, mas nunca desfeita. Podemos nos arrepender, pedir perdão a quem a sofreu, formular o firme propósito de não mais agir de forma injusta etc., mas não podemos desfazer aquilo que já foi feito e cujos efeitos já deixaram as marcas no corpo e/ou na alma.
A Maçonaria, através de seus ensinamentos, refreia as pessoas da comissão de injustiças. Para o verdadeiro maçom, trapacear, levar vantagem no comércio, no foro, na política etc., não é menos culpável do que roubar. Deliberar mentiras não é crime menor que o perjúrio, caluniar não é menor do que usurpar e seduzir para o mal não é menor que o homicídio.
Pensemos em quanta falta faz hoje, à Maçonaria e à sociedade de forma geral, a aprendizagem sincera das lições desse Grau. Quantos “Irmãos” carregados de graus e de títulos, cheios de poderes maçônicos e cargos, só se servem deles para a obtenção das mais profanas vantagens motivadas pelos mais baixos e condenáveis interesses?
Com quanta facilidade e com quanta irresponsabilidade são propagadas fofocas, inverdades, calúnias, injúrias e difamações de maçons para com outros maçons? O que dizer das manobras sujas, das campanhas difamatórias, das trocas de acusações etc., às quais assistimos em cada período eleitoral dentro da Ordem?

IV. O Simbolismo do Grau

IV.1. A balança

Na mitologia grega, Themis, Deusa da Justiça, tem por atributo a balança que permite julgar com equidade. Também Zeus pesa com uma balança o destino dos homens antes de lhes atribuir. No manuscrito da Franco-Maçonaria 76, na Biblioteca Nacional Francesa, a utilização da balança é definida da seguinte forma:

P. O que haveis encontrado na Loja?
R. Uma balança.
P. Que significa ela?
R. A exatidão com a qual devemos desempenhar nossas funções, e a justiça com a qual devemos decidir sobre as diferenças que surgirão entre os obreiros.

Significados complementares são dados por outros manuscritos, entre eles o de Lyon, 5.921-5:

P. Que significa a balança?
R. A exatidão e a equidade com a qual devemos desempenhar nossas funções, pois somos encarregados de finalizar amigavelmente todas as diferenças que surgirem entre os obreiros do Templo sobre os quais nós fazemos inspeção.

O manuscrito de Avignon, 30.083, dá como resposta:
R. Eu farei a mais exata justiça a todos os obreiros do Templo, em conformidade com a balança que me foi dada por emblema.

Um mestre deve se esforçar para fazer a justiça com toda a objetividade e equidade, buscando a verdade em todas as situações. A balança é um símbolo de equilíbrio e exatidão. Atributo do preboste e juiz, se encontra nela o símbolo do nível, que é o emblema do Segundo Vigilante na Loja Azul. A balança exprime a lei do equilíbrio universal de onde os fundamentos de sua estabilidade apresentam a imagem fixa dos dois pratos imobilizados no mesmo nível. Os dois pratos da balança trazem numerosas correspondências simbólicas: como força de polos opostos e complementares. O braço e o eixo da balança formam um “T”; este símbolo faz alusão à coluna do meio da árvore da Sefirotes. Os dois lados do braço representam o rigor ou a força e a misericórdia ou clemência. Este símbolo do “T” se reencontra no sinal do preboste e juiz.
A balança dada por Salomão ao intendente dos edifícios é símbolo de estabilidade, manifestada pela lei do equilíbrio posta em ato através de sua manifestação.

IV.2. A chave de ouro

A chave de ouro é apresenta da como tendo uma dupla função: de um lado, ela dá acesso à urna onde está o coração de Hiram (o plano ideal da perfeição); de outro, ela permite abrir o cofre que contém os planos do Templo, o plano da prática:

P. Que significa a chave?
R. Que somos nós que sabemos onde repousa o coração de nosso respeitável Mestre Hiram.

O simbolismo da chave está evidentemente relacionado com seu duplo papel de abertura e fechamento. É, ao mesmo tempo, um papel de iniciação e de discriminação. O poder das chaves é o que lhe faculta ligar ou desligar, abrir ou fechar. Na terminologia hermética, as chaves aparecem como emblemas da autoridade espiritual e da função régia, também dos grandes mistérios e dos pequenos mistérios. No Japão a chave é também símbolo de prosperidade, uma vez que abre o celeiro de arroz. Possuir a chave significa ter sido iniciado. Indica não só a entrada num lugar, cidade ou casa, mas acesso a um estado, morada espiritual, ou grau iniciático.
Nos contos, como nas lendas, muitas vezes se mencionam três chaves: elas introduzem sucessivamente em três recintos secretos, que são outras tantas antecâmaras do mistério. De prata, ouro ou diamante, elas marcam as etapas da purificação e da iniciação. A chave é, aqui, o símbolo do mistério a penetrar, do enigma a resolver, da ação dificultosa a empreender, em suma, das etapas que conduzem à iluminação e à descoberta.

IV.3. A arca de ébano
A arca é de madeira de ébano, matéria vegetal, caracterizada por sua dureza, sua densidade e sua cor negra. Esta arca contém o segredo da construção pelos planos que detém. Ela evoca a ideia de que o corpo físico do arquiteto está entregue à putrefação depois que a carne deixou os ossos, devido à sua cor negra.
A arca de ébano relembra a terra, destinada a preservar as coisas que merecem ser preservadas, como os tesouros. O simbolismo aqui tem por base dois elementos, o fato de nele se depositar um tesouro material ou espiritual, e o fato de que a abertura da arca seja o equivalente de uma revelação. Aquilo que se depõe na arca é o tesouro da Tradição, um instrumento da sua revelação e da sua comunicação com o céu, e é este o motivo pelo qual os imperadores da China selavam em arcas, no cume do monte Taishan, as súplicas endereçadas ao Soberano Celeste. A revelação divina não pode ser levianamente despida de seus véus. O cofre não pode ser aberto, senão na hora providencialmente estabelecida, e só pelo detentor legítimo da chave. A abertura ilegítima do cofre é cheia de perigos.

V. Conclusão
Há muito mais a se falar e estudar sobre este Grau. No entanto, o atual formato de nossa ritualística impede que haja um tempo maior para se estudar cada grau como deveríamos poder fazer.
Gostaríamos de falar sobre as modificações nos paramentos e outros muitos detalhes que, infelizmente o tempo não nos permite. Convidamos os Irmãos à pesquisa!