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domingo, 19 de fevereiro de 2017

A segunda religiosidade - Julius Évola

Tradução e Adaptação para o português: André Otávio Assis Muniz
           
            Mostramos, em um capítulo precedente, até que ponto estão desprovidas de fundamento as ideias de alguns vulgarizadores que pretendem que a física ultramoderna tenha superado o estado materialista e que tenha se orientado para uma nova visão espiritualista da realidade. As pretensões do que pode chamar-se neo-espiritualismo se fundamentam sobre um erro análogo.  Outros meios também desejariam desembocar na mesma conclusão, ou seja, que um retorno à espiritualidade se anuncia através da atual proliferação de tendências para o sobrenatural e o suprassensível manifestadas em movimentos, seitas, capelas, lojas e conciliábulos de todo tipo, alimentando-se em comum com a ambição de prover o homem ocidental de algo além das formas dogmáticas e institucionalizadas da religião, consideradas insuficientes e ineficazes, e conduzir-lhe mais além do materialismo.
            Aqui também se trata de uma ilusão devida à falta de princípios que caracteriza a nossos contemporâneos. A verdade é que, na maioria destes casos, encontramo-nos diante de fenômenos que formam parte dos processos dissolutivos da época e que, existencialmente, apesar das aparências, têm um sentido negativo e representam uma contrapartida solidária do materialismo ocidental.
            Para conhecer a verdade e o sentido deste novo espiritualismo, podemos referir-nos ao que Oswald Spengler escreveu sobre a “segunda religiosidade”. Em sua principal obra, esse autor expõe ideias que, apesar de estarem misturadas com graves conclusões e divagações pessoais de todo tipo, reproduzem, em parte, a concepção tradicional da História, quando fala de um processo que, nos diferentes ciclos de civilização, conduz da forma de vida orgânica das origens, onde dominam, pelo contrário, o intelecto abstrato, à economia e às finanças, ao espírito prático e o mundo das massas, com um fundo de grandeza puramente material. O processo terminal foi estudado mais de perto por René Guénon, o qual, empregando uma imagem da evolução da vida dos organismos, falou de duas fases, a fase de rigidez do corpo abandonado pela vida (correspondente em termos de civilização, ao período do materialismo), seguida da fase final, a da decomposição do cadáver.
            Segundo Spengler, a “segunda religiosidade” é um dos fenômenos que acompanham sempre as fases terminais de uma civilização. A margem de estruturas de uma grandeza bárbara, a margem do racionalismo, do ateísmo prático e do materialismo, se manifesta formas de espiritualidade e de misticismo, por assim dizer, erupções do suprassensível que não são sinais de uma recuperação, mas os sintomas de uma desintegração. Não se trata já da religião das origens, das formas severas que, como herança das elites dominantes, estavam no centro de uma civilização orgânica e qualitativa (o que, propriamente, chamamos o “mundo da Tradição”) e que marcavam todas as suas expressões. Em tal fase, inclusive as verdadeiras religiões perdem toda a dimensão superior, se secularizam, se adormecem, cessam de cumprir sua função original. A “segunda religiosidade” se desenvolve fora destas, frequentemente, inclusive contra elas, mas o faz também fora das correntes predominantes da existência e corresponde geralmente a um fenômeno de evasão, alienação, compensação confusa, não tendo nenhuma repercussão séria sobre a realidade, que atualmente é uma civilização apagada, mecanizada e puramente terrestre. Tal é o lugar e o sentido da “segunda religiosidade”. Podemos completar o esquema remetendo-nos a René Guénon, cuja doutrina é muito mais profunda que a de Spengler. Este autor constatou que depois do materialismo e do “positivismo” do século XIX que haviam conseguido isolar o homem daquilo que está verdadeiramente por cima dele – do verdadeiramente sobrenatural, da transcendência – numerosas correntes do século XX têm tido uma aparência de “espiritualismo” ou se apresentam como uma “nova psicologia”, tendendo a abri-lo ao que está por baixo dele, por baixo do nível existencial, correspondente geralmente à pessoa humana realizada. Poderíamos fazer referência, aqui também, a uma expressão de Aldous Huxley e falar de uma “auto transcendência descendente” oposta à “auto transcendência ascendente”.
            Da mesma forma que é certo que o ocidente se encontra atualmente na fase sem alma, coletivizada e materializada, própria do fim de uma civilização, igualmente, não cabe dúvida de que a maior parte dos fatos que se consideram como o prelúdio de uma nova espiritualidade dependem simplesmente de uma “segunda religiosidade” e representam algo híbrido, dissolúvel e subintelectual. São como os fogos fátuos que se manifestam quando um cadáver se decompõe; portanto, devemos ver nestas tendências, não o oposto à civilização crepuscular de hoje em dia, senão uma de suas contrapartidas que poderiam, inclusive, se se confirmassem, ser o prelúdio de uma fase regressiva e dissolvente mais avançada. Em particular, ali onde não se trata só de simples estados de alma ou de teorias, senão ali onde o interesse mórbido pelo sensacional e o oculto se acompanha de práticas evocatórias e de uma abertura das capas subterrâneas da psique humana – como sucede frequentemente no caso do espiritismo e da psicanálise – podendo-se falar, com René Guénon, de “fissuras na grande muralha”, de perigosas fendas neste círculo de proteção que preserva, apesar de tudo, na vida ordinária, a todo indivíduo normal e de espírito lúcido, contra a ação das forças obscuras reais, ocultas atrás da fachada do mundo dos sentidos e sob o umbral dos pensamentos humanos formados e conscientes. Deste ponto de vista, o neo-espiritualismo aparece, pois, mais perigoso todavia que o materialismo ou o positivismo, já que este, por seu primitivismo e sua miopia intelectual, reforçava este círculo, que limitava certamente, mas que também protegia.
            Por outra parte, nada indica melhor o nível em que se situa o neo-espiritualismo que a qualidade humana de bom número dos que o cultivam. Enquanto que as ciências sagradas eram a prerrogativa de uma humanidade superior, das castas reais e sacerdotais, hoje, são em sua grande maioria, médiuns, “magos” de bairro, radiestesistas, espiritualistas, antropósofos, astrólogos e videntes, anúncios publicitários, teosofistas, curandeiros, vulgarizadores de um yoga americanizado etc., os que proclamam o novo verbo anti-materialista acompanhando-se de algum místico exaltado e visionário e de algum profeta improvisado. A mistificação e a superstição se mesclam quase constantemente no neo-espiritualismo do qual outra característica significativa é a proporção importante de mulheres (fracassadas, desviadas, “fora de uso”) que se dedicam a ele, particularmente nos países anglo-saxões. De fato, como orientação geral, pode falar-se de “espiritualidade feminina”.
            Mas se trata, uma vez mais, de um tema que numerosas vezes tivemos ocasião de falar. No marco do problema que nos interessa particularmente aqui, só importa a lamentável confusão que pode nascer das frequentes referências que faz o neo-espiritualismo, a partir do teosofismo anglo-indiano, a certas doutrinas pertencentes ao que chamamos o mundo da Tradição, particularmente em suas formas orientais.
            É importante assinalar aqui uma clara separação. É preciso saber que se trata quase sempre de falsificações destas doutrinas, resíduos ou fragmentos, misturados com os piores preconceitos ocidentais e meras divagações pessoais. O neo-espiritualismo não tem, em geral, nenhuma noção do plano ao qual pertenciam as ideias que adotou, assim como da meta verdadeira que tinham seus seguidores, com efeito, estas ideias acabam, frequentemente, servindo de simples substitutos destinados a satisfazer exigências idênticas às quais as que movem a outros para a fé ou a simples religião: grave equívoco, pois se trata, ao contrário, de metafísica e, frequentemente, estes ensinamentos pertenciam exclusivamente, no mundo tradicional, ao das “doutrinas internas”, não divulgadas. Além disso, não é certo que a decadência e o esgotamento da religião ocidental sejam as únicas razões que movem aos neo-espiritualistas a interessar-se nestes ensinamentos, a difundi-los e mostra-los em público. Outras razões são que muitos deles creem que estas doutrinas são mais “abertas” e consoladoras, que eximem das obrigações e dos laços próprios às confissões históricas, quando o certo é que se trata do contrário, ainda que se trate de outro tipo de laços. Temos um exemplo típico na valorização completamente moralizante, humanitária e pacifista que se fez e se faz recentemente da doutrina budista (segundo o Pandit Nehhru: “Se deveria escolher entre a bomba H e o Budismo”). De outro lado, vemos a Jung “valorizar” em termos de psicanálise todo tipo de ensinamentos e de símbolos dos Mistérios, adaptando-os para o tratamento de indivíduos neuropatas e dissociados.
            É assim como poderíamos chegar a perguntar-nos em que medida o efeito prático do neo-espiritualismo não é negativo também a partir de outro ponto de vista em razão do inevitável descrédito em que caem os ensinamentos pertencentes às doutrinas internas do mundo da Tradição, depois do modo deformado e ilegítimo através do qual estas correntes as fazem conhecer e as propagam. É preciso, com efeito, possuir uma orientação interior muito precisa ou um instinto não menos preciso para conseguir separar o que é positivo do negativo, para encontrar nestas correntes a incitação a uma verdadeira união com as origens e a um redescobrimento de um saber esquecido. E se chega-se a isso e se toma o caminho correto, não se tardará em abandonar completamente tudo o que procede deste ponto de partida vocacional, ou seja, do espiritualismo atual e, sobretudo, do nível espiritual que lhe corresponde: um nível do qual estão completamente ausentes a grandeza, o poder, o caráter severo e soberano, próprio do que se encontra mais além do humano e que é o único que poderia abrir um caminho mais além do mundo que está em transe e de viver a “morte de Deus”.
            Isto concerne, sobretudo, ao plano da doutrina. O homem diferenciado do qual nos ocupamos aqui que se interessar por este terreno deveria estabelecer muito claramente a distinção que acabamos de indicar: se não dispõe de fontes de informação mais diretas e mais autênticas que os subprodutos e fosforescências ambíguas da “segunda religiosidade”, lhe será preciso aplicar-se a discriminar e completar estes dados. Este trabalho será facilitado, além do mais, pela ciência moderna das religiões e por outras disciplinas análogas graças às quais textos fundamentais de várias religiões estão disponíveis agora em conhecidas versões que se bem podem ver-se afetadas pelas limitações próprias do academicismo e da especialização (filologia, orientalismo etc) estão, ao menos, isentas das deformações, divagações e mesclas do neo-espiritualismo. Se dispõe assim da base ou matéria-prima necessária para superar o ponto de partida inicial e ocasional.
            É preciso, além disso, examinar o problema em seu aspecto prático. Como dissemos, o neo-espiritualismo enfatiza frequentemente a prática e a experiência interior e toma de outro mundo, da antiguidade ou do oriente, além de certas concepções do suprassensível, caminhos e disciplinas tendentes à superação dos limites da consciência ordinária do homem. Aqui também, no entanto, se volta a encontrar o erro já assinalado a propósito dos ritos católicos que terminam por ser profanados e perdem toda a verdadeira significação “operativa” ao ser aplicados à massa sem que se dêem as condições necessárias para sua eficácia: o equívoco é mais grave no caso do qual nos ocupamos, pois a finalidade é muito mais ambiciosa.
            Deste ponto de vista, podemos esquecer as variantes mais bastardas, “ocultistas”, do neo-espiritualismo, em primeiro plano das quais se situa o interesse dedicado à “clarividência” ou a tal ou qual pretendido “poder” e a toda espécie de pactos concluídos com o invisível. Tudo isto não pode ser mais que absolutamente indiferente ao homem diferenciado: não é seguindo este caminho que se pode resolver o problema do sentido da existência, pois se permanece sempre aqui no mundo dos fenômenos, e se pode inclusive resultar disso uma evasão e maior dispersão (parecida à que favorece, em outro plano, a multiplicação esmagadora de conhecimentos científicos e de meios técnicos) em lugar de um aprofundamento existencial. Mas ainda que não seja mais que de um modo confuso, algo mais e diferente se anuncia algumas vezes no neo-espiritualismo quando se tende à “iniciação”, quando esta é apresentada como a culminação de diferentes práticas, “exercícios”, ritos, técnicas de yoga etc.
            Se não se pode pronunciar a este respeito uma condenação pura e simples, é, no entanto, necessário dissipar algumas ilusões. Tomada em sua acepção rigorosa e legítima, a iniciação corresponderia no homem à uma mudança real do estado ontológico e existencial, à abertura efetiva da dimensão da transcendência. Isto seria a realização indubitável e a apropriação integral e “descondicionadora” da qualidade que temos considerado como o fundo mesmo do tipo humano que nos interessa, do homem que está ainda arraigado, espiritualmente, no mundo da Tradição. Assim se apresenta o problema quando uma ou outra corrente do neo-espiritualismo exuma e apresenta métodos e caminhos “iniciáticos”.  
            É preciso circunscrever este problema tendo em conta que, no marco deste trabalho, não nos ocupamos mais que de homens distanciados de seu meio que concentraram toda sua energia na direção da transcendência como podem fazer o asceta ou o santo no domínio religioso. Se trata, pelo contrário, do homem que aceita viver no mundo e em sua época, tendo, no entanto, uma forma interior diferenciada da dos seus contemporâneos. Este homem sabe que em uma civilização como a nossa, é impossível restaurar as estruturas que, no mundo da Tradição, dariam um sentido ao conjunto da existência, mas, inclusive no mundo da Tradição, o que pode fazer-se corresponder ao ideal da iniciação pertencia aos picos, a um domínio diferenciado que comportava limites precisos, a uma via que tinha um caráter excepcional e original. Se tratava não do nível ou da lei geral, do alto da Tradição, que ordenava a existência comum em uma civilização dada, mas de um plano superior, virtualmente desprendido desta mesma lei porque estava situado em sua origem. Se pode tratar aqui as distinções que se impõe inclusive no domínio das iniciações. Devemos limitar-nos a insistir sobre o significado mais alto, mais essencial que toma a iniciação quando se situa sobre o plano metafísico, significado que é, como dissemos, o do “descondicionamento” espiritual do ser. As formas mais limitadas que correspondem às iniciações de casta, às iniciações tribais e também às iniciações menores ligadas a tal ou qual poder do cosmos, como em alguns pontos e profissões antigas – formas diferentes, consequentemente, da “grande libertação” – devem ser assim mesmo, deixadas de lado, porque no mundo moderno estão completamente desprovidas de base.
            Precisamente é em sua mais alta acepção, metafísica, como se a compreende, e se deve pensar a priori, que em uma época como a nossa, em um meio como este em que vivemos, e tendo em conta também à conformação interior geral dos indivíduos (que se ressente fatalmente de uma herança coletiva, antiga de vários séculos, que é absolutamente desfavorável), a iniciação se apresenta como uma possibilidade mais que hipotética e aquele que vê as coisas diferentemente, ou não compreende do que se trata, ou se equivoca ele mesmo enganando aos demais. O que é preciso demolir da forma mais clara é a transposição neste domínio da imagem individualista e democrática do self made man, ou seja, a ideia segundo a qual se pode converter em “iniciado” a quem queira e que se pode sê-lo por si mesmo graças a suas próprias forças, recorrendo a “exercícios” e práticas de diversos tipos. Tal coisa é uma ilusão, a verdade é que com as meras forças do indivíduo humano não se pode ir além da individualidade humana e que qualquer resultado possível neste campo é condicionado pela presença e ação de um genuíno poder de ordem diferente e não individual. Podemos afirmar categoricamente que no que diz respeito à iniciação não há mais que três casos possíveis.
            O primeiro caso é o daquele que possui já, por natureza, esta força diferente. É o caso excepcional do que foi chamado a “dignidade natural”, que não procede do simples nascimento humano, pode comparar-se ao que é a eleição no domínio religioso. O homem diferenciado citado aqui deve possuir uma estrutura parecida ao tipo ao qual esta primeira possibilidade se refere. Mas para “dignidade natural” neste específico, técnico sentido comporta uma série de problemas que só poderão ser superados se o teste de si mesmo, citado no capítulo 1 estiver oportunamente orientado nesta direção.
            Os outros dois casos são de uma “dignidade adquirida”. Se pode, em primeiro lugar, supor que a força em questão apareça, e que uma brusca ruptura de nível, existencial e ontológica, se produza por ocasião de crises profundas, traumatismos espirituais ou ações desesperadas. É então possível que o indivíduo se não se destrói seja conduzido a participar desta força, inclusive sem haver-se proposto conscientemente a chegar a tal fim. É preciso, no entanto, esclarecer que, em casos deste tipo, uma energia havia sido já acumulada e as circunstâncias provocaram sua súbita manifestação, resultando, como consequência, uma mudança de estado: é por isso que estas circunstâncias aparecem como uma causa ocasional, mas não determinante; necessária, mas não suficiente. Da mesma forma que a última gota não fará transbordar o recipiente se este não está cheio, ou a ruptura de um dique não provocaria o transbordar das águas a não ser que as águas exerçam sobre ele uma forte pressão.
            O terceiro e último caso é aquele em que a força em questão é enxertada sobre o indivíduo em virtude da ação de um representante de uma organização iniciática pré-existente devidamente qualificado para fazê-lo. É o equivalente ao que no plano religioso, é a ordenação sacerdotal que, teoricamente, ao menos, deveria imprimir no indivíduo um caracter indelebilis qualificando-o para realizar eficazmente os ritos. O autor que citamos, René Guénon – que foi praticamente o único entre os autores modernos a tratar com autoridade e seriedade estes temas – e não deixava tampouco de denunciar os desvios, erros e mistificações do neo-espiritualismo, contempla, quase exclusivamente, esta última possibilidade. De nossa parte, estimamos, pelo contrário, que deve ser, de fato, praticamente excluída em nossos dias, em razão da ausência quase total de uma organização deste tipo. Se estas organizações tiveram sempre um caráter mais ou menos subterrâneo no ocidente em razão do tipo de religião que predominou e das repressões e perseguições que esta exerceu, na época atual desapareceram quase em sua totalidade. Em outros lugares, sobretudo no oriente, se converteram, cada vez em mais raras e inacessíveis, inclusive quando as forças que transmitiam não se haviam retirado, paralelamente ao processo geral de degeneração e modernização, que no momento presente também invadiu estas regiões. Como regra geral, o oriente mesmo hoje não está em condições de facilitar mais que subprodutos, em “regime de resíduos” e basta para convencer-se considerar a envergadura espiritual dos asiáticos que se têm dedicado a exportar e divulgar entre nós a “sabedoria oriental”.   
            Se René Guénon não viu a situação com tanto pessimismo, foi em razão de um duplo mal-entendido. O primeiro derivado do fato de que não considerou somente a iniciação no sentido pleno e atual que acabamos de definir e introduziu a noção de uma “iniciação virtual” que podia ter lugar sem nenhum efeito perceptível, permanecendo inoperante em termos concretos, o que ocorreria na quase totalidade dos casos – por fazer aqui uma nova comparação com a religião católica: a qualidade sobrenatural dos “filhos de Deus” que o rito do batismo concede inclusive a um recém-nascido subnormal. O segundo mal-entendido procede da suposição de que a força em questão está realmente transmitida inclusive quando se trata de organizações iniciáticas que em outros tempos tiveram um caráter iniciático autêntico, mas que entraram há muito tempo em uma fase de extrema degeneração até o ponto de que se pode pensar com razão que o poder espiritual que constituía originalmente tal centro se retirou, não deixando subsistir, por trás da fachada mais que uma espécie de cadáver psíquico. Sobre estes dois pontos, não podemos seguir a Guénon; pensamos, pois, que o terceiro caso mencionado é ainda mais improvável hoje que os outros dois.
            Em relação ao homem que nos interessa, se a ideia de uma iniciação deve igualmente figurar em seu horizonte mental, não deve ter ilusões ao ter medido claramente a distância que separa esta do clima do neo-espiritualismo. Não deve conceber, em princípio, como praticamente possível mais que uma orientação fundamental, uma preparação fundamental para a qual encontrará nele uma predisposição natural. Mas a realização deve permanecer indeterminada e será bom fazer intervir também a visão pós niilista da vida tal como a temos definido, visão que faz descartar todos os pontos de referência suscetíveis de provocar um desvio, uma descentralização – inclusive se a ruptura de nível, como no caso presente, estava ligada à espera impaciente do momento em que se produzirá, por fim, a abertura. É neste sentido que se pode aplicar aqui a fórmula Zen já citada; “Quem busca o Caminho se aparta do Caminho”.
            Uma visão realista da situação e uma justa medida de si mesmo, obrigam, pois, a considerar que a única tarefa séria e essencial consiste em dar um relevo cada vez maior à dimensão, mais ou menos encoberta, da transcendência em si. Estudos sobre o saber tradicional e o conhecimento das doutrinas poderão ser úteis, mas somente serão eficazes com uma mudança progressiva que afete o plano existencial e mais particularmente, a força que está na base da vida de cada um enquanto pessoa: esta força que para a maior parte das pessoas está ligada ao mundo e é simplesmente a vontade de viver. Este resultado é comparável à indução do magnetismo em um pedaço de ferro – uma indução que é também a de uma força que lhe imprime uma direção. Se poderá então levantar o metal e movê-lo como se desejar, mas depois de oscilar por um certo tempo e amplitude, ele sempre retornará ao ponto direcionado ao polo. Quando a orientação para a transcendência não tiver só um caráter mental ou emocional, mas consiga penetrar o ser da pessoa, o essencial da obra estará já realizado, o grão terá entrado na terra e o resto constituirá algo secundário, uma simples consequência. Todas as experiências e todas as ações que, quando se vive no mundo, e sobretudo em uma época como a nossa, podem apresentar o caráter de distração e estar ligadas a contingências, terão então tão pouca importância como os deslocamentos depois dos quais a agulha imantada recupera sua direção. Como dissemos, o que poderá eventualmente produzir-se dependerá das circunstâncias e de uma sabedoria invisível. E a este respeito os horizontes não se confundem com os que são próprios da existência individual e finita que o homem diferenciado vive atualmente sobre esta terra.
            Assim, deixado de lado o objetivo distante e demasiado pretensioso de uma iniciação absoluta e real, compreendida no sentido metafísico, inclusive o homem diferenciado deve considerar-se feliz se pode alcançar realmente esta modificação que integra, de forma natural, os efeitos parciais das atitudes definidas para ele, em domínios muito diferentes ao longo desta obra.

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