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segunda-feira, 10 de abril de 2017

Fantasia e Conhecimento

Julius Evola

Traduzido e adaptado do  texto italiano original por Marcelo D. Prati

Um dos maiores preconceitos que, no dia de hoje impedem, de maior maneira, a compreensão do mundo antigo, ou daquelas civilizações que, até agora conservam traços que são irredutíveis às formas da civilização “moderna”, é aquela de supor que o homem sempre possuiu as mesmas formas de conhecimento com as mesmas faculdades que hoje se encontram na maioria das pessoas.

Tomemos a fantasia ou a imaginação, por exemplo. Hoje cremos que essa, no estado de vigília, na maior parte dos casos, é uma faculdade puramente subjetiva: essa elabora formas ausentes de qualquer relação com a “realidade”, tanto que hoje, dizer fantástico e dizer irreal ou arbitrário dá tudo no mesmo. Esse tipo de julgamento se estende a grande parte das expressões da civilização pré-moderna, baseado na importância que, neles, nas fábulas, mitos, símbolos, etc., estava a faculdade fantástica. Não apenas isso: o mesmo se pensa do que concerne a certos fenômenos supernormais ou extranormais que, ainda hoje, aqui e ali, como visões ou aparições, ocorrem esporadicamente em alguns indivíduos, em circunstâncias especiais.

Esse é um caso específico no qual um pressuposto arbitrário conduz a gravíssimas incompreensões.  A fantasia seria sempre produtora de formas irreais que habitam o ar? Ainda se referindo ao homem de hoje, isso é discutível. Tomemos o fenômeno do sonho. Nem tudo no sonho é fantasia irreal ou a tradução de sensações corpóreas obscuras e de impulsos reprimidos. Em alguns casos, o sonho é a tradução simbólica e, apenas como tal, fantástica, de uma percepção que, em si, é real, objetiva. Por exemplo, um adormecido pode perceber confusamente o barulho de uma cadeira que cai e vivê-lo simbolicamente na imagem de um sonho com um terremoto ou um golpe de canhão. Essa imagem, em si, é fantástica, mas como símbolo não é irreal: sendo arbitrária unicamente na maneira em que a percepção real é traduzida pelo adormecido. Aquele que estivesse desperto e pudesse perceber simultaneamente o barulho físico e a imagem vista pelo adormecido, reconheceria claramente a correspondência, que é o fato que a fantasia aqui não foi criada do nada, mas traduziu através de uma imagem simbólica subjetiva, algo de objetivo.

Isso ocorre porque no estado do sono e do sonho, a fantasia se encontra em um estado diferente que quando se está desperto: ela é, numa certa medida, livre e ativa, não é restrita, como na vida no estado de vigília, pelos sentidos e pelo controle do cérebro. Agora, sobre semelhante estado da fantasia, hoje encontrado apenas no sono, é necessário supor que se encontrava fundamentalmente presente de forma quase ordinária e normal na mesma vida de vigília do homem antigo. E essa é a chave para entender tantos aspectos mal compreendidos de suas civilizações, de suas tradições e de seus mitos.

Naturalmente, aqui se precisa admitir outra premissa, vale dizer que a natureza possui um lado interno e um lado externo, com os fenômenos físicos que chegamos a conhecer através dos sentidos físicos correspondendo à exterioridade, ao modo exterior e físico de se mostrar de forças mais sutis, estando em primeiro plano, como a psique está à sua expressão corpórea. Agora, no homem antigo, dado a mencionada diferença na qualificação de suas faculdades fantásticas, era possível uma percepção simbólica de tais forças. As forças da natureza, de igual modo que agindo sobre os órgãos dos sentidos, produzem uma percepção dotada de valores de compreensão objetiva e esses, por sua vez, agindo sobre a fantasia do homem antigo, produziam uma visão, ou imagem, ou representação fantástica que possuía igualmente um valor de compreensão objetiva sui generis. Surgiam então formas simbólicas que traduziam figurativamente um contato com o aspecto interno das forças da natureza. O arbitrário aqui se limitava à expressão, à imagem porque era símbolo: mas tudo isso não surgia nem do nada e nem do puro arbítrio: como no mencionado caso do sonho, uma percepção real, objetiva, contudo, confusa, constituía sua base e sua causa. E aquele que tivesse a faculdade de ver o sentido superior – esse é o tipo antigo de Sábio, de Vidente, de iniciado – poderia facilmente captar diretamente o sentido daquilo que se ocultava por detrás de tais revestimentos fantásticos e simbólicos assim como, no exemplo adotado, a pessoa desperta que visse o sonho com o terremoto ou o tiro de canhão se daria conta imediatamente de ser aquele sonho, a tradução simbólico-fantástica do barulho, obscuramente percebido, da queda da cadeira.

O ponto crucial aqui consiste em reconhecer o erro da chamada teoria naturalística, segundo a qual, tudo aquilo que é mito, lenda, fantasia, simbologia do homem antigo, não passava da tradução fantástica daqueles puros fenômenos naturais físicos que hoje são comumente conhecidos com os sentidos corpóreos. Não: a tradução fantástica tomava, em vez disso, os movimentos daquilo que está por detrás dos fenômenos naturais físicos, ou seja, de uma realidade que, embora seja tão positiva e objetiva quanto esses, hoje é dogmaticamente negada por aquilo que se concordou em chamar de ciência, pelo fato de que a faculdade de fazer contato com tal realidade, faculdade normal no homem das idades arcaicas, hoje está perdida e não sobrevive senão esporadicamente e confusamente.

Segundo esse ponto de vista tradicional, o conhecimento da natureza própria aos modernos, ou seja, aquele científico-experimental, não é, portanto, em nada, a superação daquela sua fase infantil e fantástica, que estaria a mitologia e a simbologia dos antigos. Aquilo que o homem antigo percebia, media e às vezes até mesmo via com a sua diferente sensibilidade fantástica, se referia na verdade a uma ordem diversa: não eram devaneios, nem poesia pré-científica, mas um dado imediato de uma outra experiência, que se interpunha espontaneamente entre a trama daqueles que os sentidos físicos se revelam quase a formá-la por completo e de maneira integral.


Considerando assim, tudo aquilo que no mundo antigo é patrimônio, digamos assim, do fantástico, não é em nada um “estado superado”. Como uma ganga de aparência desprezível, oculta em um metal precioso, assim aquele patrimônio contém oculto em estado latente, um conhecimento superior, absolutamente irredutível a uma medida que, tanto hoje ou em qualquer momento do futuro, aos modernos convenha chamar de “ciência”, tratando-se então aqui de uma diferença de qualidade e de plano. Superar o preconceito já citado e começar a pressentir tais horizontes é uma condição necessária, de fato, para que o estudo de nossas origens e do nosso passado não se reduza a um estudo de cadáveres e sua exumação não termine, por muitas vezes, de mera retórica.

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