Julius Evola
Tradução: Marcelo D. Prati
Em várias ocasiões, e não de agora, temos sublinhada
a oportunidade de integrar o arranjo político existente entre a Itália e a
Alemanha com um acordo espiritual, procedente daquilo que entre os dois povos
pode existir de comum no fato das tradições e de visões gerais de mundo. Tais
elementos comuns espirituais são, contudo, tão numerosos e importantes, quanto
mais a nós se refaz às origens e a nós se propõe a considerar o mundo das
origens com um olhar diferente daquele racionalista e ignorantemente acadêmico
do “cientificismo”. As origens das quais aqui se trata, correspondem à antiga
civilização indo-germânica, da qual tanto aquela romana antiga quanto aquela
nórdico-germânica são duas ramificações particularmente afins. E o método agora
destacado é aquele que nas religiões e nas mitologias antigas não se consideram
como superstições, como criações fantásticas ou divinizações de simples
fenômenos naturais, mas sim como formas simbólicas e dramáticas de expressões
de significados cósmicos, de forças viventes, de princípios metafísicos.
Gostaríamos então de assinalar aqui uma obra alemã
recente, perfeitamente relacionada a essa ordem de ideias, porque ela organiza
os elementos, segundo os quais temas importantes da antiga religião romana e
daquela nórdica vêm a corresponder e a por em evidência um ao outro. Se trata
da monografia de Otto Hunt, sobre o antigo deus romano Jano, publicada pela
editora Röhrscheid de Bonn. Desde a primeira página desse valioso trabalho, o
autor afirma o princípio de que “no processo de exploração da religião
itálico-romana, conduzida por via comparativa, é necessário, sobretudo, ter
presente, por fins de integração, o ciclo da civilização germânico-alemã”. As
pesquisas que seguem confirmam a fecundidade de tal princípio e mostram o alto
grau de afinidade existente entre as tradições espirituais dos dois povos, não
apenas na essência, mas mesmo em muitos detalhes e nas formas exteriores. Além
disso, partindo de tais comparações e de tais pesquisas se acende uma nova luz
sobre o significado de umas das divindades mais antigas de Roma, que é
precisamente Jano, equivalente a uma verdadeira e própria reavaliação do
próprio.
Na opinião oficial dos especialistas, Jano foi o
deus especial da porta (ianua), associado a Vesta, a deusa do fogo
doméstico. Como deus da porta, Jano foi também a divindade de todo início, por
via da correspondência do entrar com o começar. Apenas a
especulação do período imperial elevou tal antigo, mas modesto nume ao nível de
um criador do mundo.
A pesquisa de Huth demonstra, em vez disso, que tal
significado de Jano é, na verdade, o original, devidamente degradado e
obscurecido e que na figura de Jano se encontram e sintetizam-se vários motivos
de fundamental importância da antiga concepção romana (e de modo geral, ariana)
do mundo e da vida.
É já antiga tradição, testemunhada por Varrone e
Macrobio, que Jano seja criador (cerus), pai dos Deuses e dos homens,
venerado pela antiga estirpe patrícia como o ancestral originário de seu cepo.
O conceito de “senhor dos começos” é o elemento primário, a referência à
“porta” é o secundário, de peso puramente simbólico. Vários dados dão como
certo, contudo, que Jano fosse um deus do ano, uma figuração, ou seja, do ano
como manifestação de uma força divina e solar. Como na antiga concepção
nórdica, o sol é a “luz dos homens” e a “vida”, que no ano possui seu ciclo,
morrendo e ressurgindo, assim o antigo culto romano de Jano cobriu os mesmos
significados, a facilmente notável duplicidade de tal deus (Jano bifronte)
correspondeu à duplicidade da fase ascendente e descendente do sol; a dupla
porta (bem como dupla chave) a ele atribuída estaria em relação com os dois
soltícios, “porta do ano”; o posicionamento das festas principais a ele
prestadas exatamente nas datas aproximativas do solstício de inverno, ou
“Natal”, com o qual na antiguidade se começava o ano, sublinhava o caráter de
Jano como “senhor do início”, enquanto seu atributo de deus das fontes e das
correntes faria alusão à força vital (as águas geradoras) através do ciclo, o
ano cósmico, assim como aquele de uma vida humana. A festa do renovo anual do
fogo sacro em Roma, depois da extinção daquele antigo, consagrado a Vesta,
companheira de Jano, se baseia no fundo sobre uma repetição desse mesmo
significado.
É absolutamente impossível, aqui, não apenas
explicar, mas também destacar os muitos outros símbolos, dos quais Huth mostra
a íntima conexão com o culto de Jano. Sua pesquisa, de resto, poderia ser ainda
mais desdobrada e desenvolvida, sobretudo naquilo que diz respeito ao domínio
da iniciação, ou seja, das experiências interiores transcendentes, na qual o
simbolismo de Jano (e de sua mesma duplicidade) possui uma parte muito
importante. Aqui, a investigação de Huth é um pouco limitada ao fato de
considerar sobretudo o simbolismo solar e “anual” do antigo deus romano. A ele,
todavia, não escapa que a “porta” e a “passagem pela porta”, possuindo o duplo
sentido de um sair e um entrar, de um fim e um início, encarna também a ideia
de um morrer e nascer, ou seja, de um “renascer”, no que consistia
essencialmente a iniciativa. Por nossa conta acrescentaremos que a dupla chave
e a dupla face de Jano tinha relação, dentre outras coisas, com os “Pequenos
Mistérios” e os “Grandes Mistérios” da antiguidade mediterrânea, “telúricos”
uns, “celestes” os outros: e não é sem interesse destacar que esse símbolo
iniciático de Jano, da dupla chave, assim como aquele do “navio” (que não
possui apenas o significado de navio que transporta o “sol”, mas também aquele
de navio com o qual se completa a simbólica travessia das “águas”) foram
sucessivamente assumidos pela Igreja católica.
A porta como “mundus”, na antiga Roma valia
também como o local de acesso ao mundo de forças subterrâneas, invisíveis,
demoníacas ou divinas, mas em todo caso temíveis por todos os seres mortais. O
abrir da porta, o atravessar da porta, que se dava sob o signo de Jano,
simbolizava, sob tais bases, em termos gerais, o tomar contato com tais forças,
o eclodir da disposição a tais forças: empreitada que poderia ter por
consequência tanto a destruição quanto a divinização.
Um rito romano consistia em abrir, ao início de cada
guerra, as portas do templo de Jano: rito que se refere à concessão sacral e
sobrenatural que a Roma antiga, bem como qualquer outra civilização ariana,
possuía sobre a guerra. De Huth não escapa esse ponto tão interessante, ainda
que por enquanto não tenha dado todos os possíveis desdobramentos do tema.
Abrir as portas do templo de Jano em uma guerra era como proceder a uma
evocação elementar, ao desencadeamento, liberação, de forças profundas,
sobrenaturais. Entrar em guerra e encontrar-se com tais forças, para o
guerreiro e herói, era a mesma coisa: tal como em Roma e em Esparta, como entre
os antigos nórdicos e entre os Arianos da Índia. Os caídos celebravam um tipo
de sacrifício divino, propiciador de frutos sobrenaturais: mors triumphalis.
O vencedor, por outro lado, surgia como alguém que
mesmo vivo “ultrapassou o limiar”, conseguiu, atravessando a glória, uma
espécie de iniciação e de renascimento interior. Onde o caráter não militar,
mas essencialmente sacro, da cerimonia romana do triunfo, na qual o vencedor se
revestia dos mesmos signos da divindade olímpica.
Desejando daqui proceder a novas conexões, jamais se
terminaria e acabaríamos por repetir coisas que em vários livros já expusemos
mais vezes. Concluiremos então dizendo que estudos, sobre o gênero aqui
assinalado, possuem uma importância que em nada deve ser negligenciado: dos
antigos mitos e símbolos podem chegar a nós palavras vivas, grandes
significados cósmicos, solares e heroicos, quando esses são capazes de fazer
vibrar aquilo que em uma raça foi passado à obscura zona do subconsciente, mas
que, todavia, é indestrutível, porque está conectado à “tradição”, à força
formadora das suas origens.
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