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quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Jano

Julius Evola

Tradução: Marcelo D. Prati

Em várias ocasiões, e não de agora, temos sublinhada a oportunidade de integrar o arranjo político existente entre a Itália e a Alemanha com um acordo espiritual, procedente daquilo que entre os dois povos pode existir de comum no fato das tradições e de visões gerais de mundo. Tais elementos comuns espirituais são, contudo, tão numerosos e importantes, quanto mais a nós se refaz às origens e a nós se propõe a considerar o mundo das origens com um olhar diferente daquele racionalista e ignorantemente acadêmico do “cientificismo”. As origens das quais aqui se trata, correspondem à antiga civilização indo-germânica, da qual tanto aquela romana antiga quanto aquela nórdico-germânica são duas ramificações particularmente afins. E o método agora destacado é aquele que nas religiões e nas mitologias antigas não se consideram como superstições, como criações fantásticas ou divinizações de simples fenômenos naturais, mas sim como formas simbólicas e dramáticas de expressões de significados cósmicos, de forças viventes, de princípios metafísicos.

Gostaríamos então de assinalar aqui uma obra alemã recente, perfeitamente relacionada a essa ordem de ideias, porque ela organiza os elementos, segundo os quais temas importantes da antiga religião romana e daquela nórdica vêm a corresponder e a por em evidência um ao outro. Se trata da monografia de Otto Hunt, sobre o antigo deus romano Jano, publicada pela editora Röhrscheid de Bonn. Desde a primeira página desse valioso trabalho, o autor afirma o princípio de que “no processo de exploração da religião itálico-romana, conduzida por via comparativa, é necessário, sobretudo, ter presente, por fins de integração, o ciclo da civilização germânico-alemã”. As pesquisas que seguem confirmam a fecundidade de tal princípio e mostram o alto grau de afinidade existente entre as tradições espirituais dos dois povos, não apenas na essência, mas mesmo em muitos detalhes e nas formas exteriores. Além disso, partindo de tais comparações e de tais pesquisas se acende uma nova luz sobre o significado de umas das divindades mais antigas de Roma, que é precisamente Jano, equivalente a uma verdadeira e própria reavaliação do próprio.

Na opinião oficial dos especialistas, Jano foi o deus especial da porta (ianua), associado a Vesta, a deusa do fogo doméstico. Como deus da porta, Jano foi também a divindade de todo início, por via da correspondência do entrar com o começar. Apenas a especulação do período imperial elevou tal antigo, mas modesto nume ao nível de um criador do mundo.

A pesquisa de Huth demonstra, em vez disso, que tal significado de Jano é, na verdade, o original, devidamente degradado e obscurecido e que na figura de Jano se encontram e sintetizam-se vários motivos de fundamental importância da antiga concepção romana (e de modo geral, ariana) do mundo e da vida.

É já antiga tradição, testemunhada por Varrone e Macrobio, que Jano seja criador (cerus), pai dos Deuses e dos homens, venerado pela antiga estirpe patrícia como o ancestral originário de seu cepo. O conceito de “senhor dos começos” é o elemento primário, a referência à “porta” é o secundário, de peso puramente simbólico. Vários dados dão como certo, contudo, que Jano fosse um deus do ano, uma figuração, ou seja, do ano como manifestação de uma força divina e solar. Como na antiga concepção nórdica, o sol é a “luz dos homens” e a “vida”, que no ano possui seu ciclo, morrendo e ressurgindo, assim o antigo culto romano de Jano cobriu os mesmos significados, a facilmente notável duplicidade de tal deus (Jano bifronte) correspondeu à duplicidade da fase ascendente e descendente do sol; a dupla porta (bem como dupla chave) a ele atribuída estaria em relação com os dois soltícios, “porta do ano”; o posicionamento das festas principais a ele prestadas exatamente nas datas aproximativas do solstício de inverno, ou “Natal”, com o qual na antiguidade se começava o ano, sublinhava o caráter de Jano como “senhor do início”, enquanto seu atributo de deus das fontes e das correntes faria alusão à força vital (as águas geradoras) através do ciclo, o ano cósmico, assim como aquele de uma vida humana. A festa do renovo anual do fogo sacro em Roma, depois da extinção daquele antigo, consagrado a Vesta, companheira de Jano, se baseia no fundo sobre uma repetição desse mesmo significado.

É absolutamente impossível, aqui, não apenas explicar, mas também destacar os muitos outros símbolos, dos quais Huth mostra a íntima conexão com o culto de Jano. Sua pesquisa, de resto, poderia ser ainda mais desdobrada e desenvolvida, sobretudo naquilo que diz respeito ao domínio da iniciação, ou seja, das experiências interiores transcendentes, na qual o simbolismo de Jano (e de sua mesma duplicidade) possui uma parte muito importante. Aqui, a investigação de Huth é um pouco limitada ao fato de considerar sobretudo o simbolismo solar e “anual” do antigo deus romano. A ele, todavia, não escapa que a “porta” e a “passagem pela porta”, possuindo o duplo sentido de um sair e um entrar, de um fim e um início, encarna também a ideia de um morrer e nascer, ou seja, de um “renascer”, no que consistia essencialmente a iniciativa. Por nossa conta acrescentaremos que a dupla chave e a dupla face de Jano tinha relação, dentre outras coisas, com os “Pequenos Mistérios” e os “Grandes Mistérios” da antiguidade mediterrânea, “telúricos” uns, “celestes” os outros: e não é sem interesse destacar que esse símbolo iniciático de Jano, da dupla chave, assim como aquele do “navio” (que não possui apenas o significado de navio que transporta o “sol”, mas também aquele de navio com o qual se completa a simbólica travessia das “águas”) foram sucessivamente assumidos pela Igreja católica.

A porta como “mundus”, na antiga Roma valia também como o local de acesso ao mundo de forças subterrâneas, invisíveis, demoníacas ou divinas, mas em todo caso temíveis por todos os seres mortais. O abrir da porta, o atravessar da porta, que se dava sob o signo de Jano, simbolizava, sob tais bases, em termos gerais, o tomar contato com tais forças, o eclodir da disposição a tais forças: empreitada que poderia ter por consequência tanto a destruição quanto a divinização.

Um rito romano consistia em abrir, ao início de cada guerra, as portas do templo de Jano: rito que se refere à concessão sacral e sobrenatural que a Roma antiga, bem como qualquer outra civilização ariana, possuía sobre a guerra. De Huth não escapa esse ponto tão interessante, ainda que por enquanto não tenha dado todos os possíveis desdobramentos do tema. Abrir as portas do templo de Jano em uma guerra era como proceder a uma evocação elementar, ao desencadeamento, liberação, de forças profundas, sobrenaturais. Entrar em guerra e encontrar-se com tais forças, para o guerreiro e herói, era a mesma coisa: tal como em Roma e em Esparta, como entre os antigos nórdicos e entre os Arianos da Índia. Os caídos celebravam um tipo de sacrifício divino, propiciador de frutos sobrenaturais: mors triumphalis.

O vencedor, por outro lado, surgia como alguém que mesmo vivo “ultrapassou o limiar”, conseguiu, atravessando a glória, uma espécie de iniciação e de renascimento interior. Onde o caráter não militar, mas essencialmente sacro, da cerimonia romana do triunfo, na qual o vencedor se revestia dos mesmos signos da divindade olímpica.

Desejando daqui proceder a novas conexões, jamais se terminaria e acabaríamos por repetir coisas que em vários livros já expusemos mais vezes. Concluiremos então dizendo que estudos, sobre o gênero aqui assinalado, possuem uma importância que em nada deve ser negligenciado: dos antigos mitos e símbolos podem chegar a nós palavras vivas, grandes significados cósmicos, solares e heroicos, quando esses são capazes de fazer vibrar aquilo que em uma raça foi passado à obscura zona do subconsciente, mas que, todavia, é indestrutível, porque está conectado à “tradição”, à força formadora das suas origens.

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