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quinta-feira, 2 de novembro de 2017

O Navegar como símbolo heroico

Julius Evola

Tradução: Marcelo D. Prati 

Se existe uma característica das novas gerações, essa é a superação do elemento “romântico”; o retorno ao elemento épico.
Não interessam mais palavras, complicações psicológicas e intelectualistas, mas sim ação. E o ponto fundamental é este: que, em oposição ao que é próprio dos fanatismos e dos desvios “esportivos” das raças anglo-saxãs, as nossas novas gerações tendem a superar o lado puramente material das ações, tendem a integrar e clarificar tal lado com um elemento espiritual, tornando, mais ou menos conscientemente, naquele agir, que é um liberar-se, um tomar contato real e não estético e sentimental, com as grandes potências das coisas e dos elementos.
Agora, há ambientes naturais que mais particularmente propiciam tais possibilidades libertadoras e reintegradoras da épica e da ação, e são a alta montanha e o alto mar, com os dois símbolos do ascender e do navegar. Aqui, pela via mais imediata, a luta contra as dificuldades e contra os perigos materiais, se faz meio para alcançar simultaneamente um processo interno de superação, para completar uma luta contra elementos que fazem parte da natureza inferior do homem e que devem ser dominados e transfigurados.
Algumas gerações de superstição positivista e materialista têm feito com que tantas belas e profundas tradições da antiguidade sejam sepultadas no esquecimento, ou ainda que sejam tomadas unicamente como objetos de curiosidade erudita; ignorando e fazendo ignorar o significado superior sobre o qual tais estão sempre suscetíveis e que pode ser sempre novamente desperto e renascido.
Isso, por exemplo, se pode dizer sobre o antigo simbolismo da navegação, que é um dos simbolismos tradicionais mais difusos em todas as civilizações pré-modernas, que pode ser encontrado com características de uma estranha uniformidade, que nos faz pensar o quão universais e profundas devem ter sido certas experiências espirituais ante às grandes forças desses elementos. E sobre isso não cremos inoportuno fazer aqui alguma menção:
O navegar - e em particular o atravessar as águas tempestuosas - tem sido tradicionalmente exaltado ao valor de símbolo, enquanto nas águas, como águas do oceano ou águas correntes, figuraram sempre como o elemento instável, contingente da vida terrena, da vida sujeita a decadência, ao nascimento e a morte - e foi, além disso, e mais particularmente representado o elemento passional e irracional que altera essa mesma vida. Se a terra firme, sob um primeiro aspecto, se vale como sinônimo de mediocridade, de existência pávida e pequena, pousada sobre certezas e sustento, cuja estabilidade é completamente ilusória - o abandonar a terra firma, o voltar-se para o vasto, o afrontar intrepidamente a corrente ou o alto-mar, portanto, o “navegar”, surge espontaneamente como o ato épico por excelência, não apenas em sentido imediato, mas também no sentido espiritual.
O navegador se apresentou, então, como sinônimo de herói e de iniciado, como sinônimo daquele que, abandonando o simples “viver”, deseja ardentemente o “mais que viver”, num sentido de um estado superior à decadência e à paixão.
Surge então o conceito da outra terra firme, aquela verdadeira, que se identifica com a mesma metade do “navegador”, com a conquista que é aquela mesma épica do mar: e a “outra margem”, é a terra primeiramente desconhecida, inexplorada, inacessível, dada pelas antigas mitologias e pelas antigas tradições com os símbolos mais variados, entre os quais é, contudo, tão frequente, aquele da ilha, imagem para a firmeza interior, par aa calma e o domínio daquele que felizmente e vitoriosamente “navegou” portando-se entre as ondas ou a impetuosa corrente, mas sem dela tornar-se presa.
O atravessar de uma grande corrente a nado ou como piloto de um navio era fase simbólica fundamental naquela assim chamada “iniciação real” que se celebrava nos Eleuses. Jano, a antiga divindade da romanidade, deus dos começos e ainda, em sentido eminente, da iniciação daquela “nova vida”, era também o deus do navegar; tinha entre suas insígnias características, o navio. E tal navio de Jano, como também duas duas chaves são passadas depois para a tradição católica, figurando na nave de São Pedro e de modo geral no simbolismo da função pontífice. Agora, se poderia observar que o próprio termo pontifex, nas antigas etimologias romanas, significava o “fazedor de pontes”; que pons contudo, arcaicamente, significava também via e como “via” vinha também correlacionado ao mar, e a Ponte vem a ser chamada dessa maneira por nenhuma outra razão que não essa. Onde vemos como que através de uma trama oculta, mesmo em palavras e signos, hoje quase não mais compreensíveis, são transmitidos elementos da antiga concepção do navegar como símbolo.
No mito caldeu do herói Gilgamesh, encontramos um exato fac-simile daquele do Hércules dórico que colhe o fruto da imortalidade do jardim das Hespérides, tendo atravessado primeiro o mar, sob a guia de Atlante, o titã. Também Gilgamesh enfrenta a via do mar, zarpa seguindo a via ocidental, ou seja, a via atlântica, na direção de uma terra, ou ilha, onde ele busca “a árvore da vida”, enquanto o oceano é comparado significativamente às “águas obscuras da morte”. E se nos deslocarmos na direção do oriente e do extremo oriente encontraremos ecos de igual experiência espiritual ligados aos símbolos heroicos e épicos do navegar, do atravessar, do velejar.
Como o asceta budista foi de maneira muito frequente comparado a aquele que enfrenta, corta e vence a corrente, a aquele atravessa, a aquele que navega glorioso contra a corrente, nas águas sendo representado precisamente tudo aquilo que vem da sede animal de vida e prazer, do vínculo do egoísmo e do aprisionamento dos homens = assim, no mesmo extremo oriente se encontra o tema helênico da “travessia” e da chegada na “ilha”, na qual a vida não está mais misturada com a morte: como Avallon ou o Mag Mell atlântico das lendas irlandesas e celtas.
Nos portemos ao Egito antigo e até o México pré-colombiano: direta ou indiretamente encontramos não diferentes elementos. E os encontramos ainda nas lendas nórdico-arianas. A mesma empreitada do herói Siegfried na ilha de Brunhild compreende essencialmente o simbolismo da navegação, da travessia do mar: Siegfried, segundo o Nibelungliedi, é aquele que diz: “As verdadeiras vias do mar me são conhecidas. Eu posso conduzir-vos sobre as ondas.”
Podemos mostrar que a mesma empreitada de Cristóvão Colombo teve mais relações do que aquilo que se conhece com as obscuras ideias sobre uma terra, onde, segundo algumas lendas medievais, se encontrariam “profetas nunca mortos”, sobre um “Elísio transatlântico” que cai precisamente no simbolismo agora dito. Além disso, podemos mostrar porque o conceito do talassocrate, do “senhor dos mares” ou das “águas” muito frequentemente se ligou antigamente com o conceito de legislador num senso superior (por exemplo, no mito pelágico de Minos): poderemos desenvolver a ideia reclusa nas representações daquele “que está sobre as águas” ou “caminha sobre as águas” ou “está salvo das águas” (de Narâyâna a Moisés, a Rômulo, a Cristo) mas tudo isso nos levaria muito longe e talvez retomemos esse assunto em outra ocasião.
Viver não é preciso. Navegar é preciso”. Tal palavra ainda hoje vive, ainda hoje é sentida e configura uma das melhores correntes da nova épica da ação - “Devemos tornar a amar o mar, a sentir a ebriedade do mar, porque vivere non necesse sed navigare necesse est” deve dizer o próprio Mussolini. Mas em tal fórmula, presa em seu aspecto mais alto, não subsiste talvez o eco daqueles antigos significados?
Não subsistirá talvez a ideia do navegar como mais que vida, como atitude heroica, como configuração de formas superiores de existência?
Quem, lá de onde reina o grande, livre sopro da amplidão, onde se sente toda a força daquilo que é sem limite, seja em sua calma poderosa e profunda, seja em sua terribilidade elementar - que sobre mares e sobre oceanos novas gerações saibam dar “epicamente” à existência física do navegar, uma alma metafísica, tanto para conferir conferir ao mesmo heroísmo e à mesma coragem o valor de um meio transfigurante e para ressuscitar assim aquilo que se trancava nas antigas tradições do zarpar e do navegar como símbolo e do mar como via através de algo que não é nem mais e nem apenas humano - isso nos parece um dos pontos mais altos que podem orientar a força de ressurreição ativa na nova Itália.

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