Acabamos de ver como o fenómeno do heroísmo guerreiro pôde
revestir várias formas e obedecer a diferentes significados, uma vez fixados os
valores de autêntica espiritualidade que o diferenciam profundamente. Por
agora, vamos começar examinando certas concepções relativas às antigas
tradições romanas. Em geral, não existe mais do que um conceito laico do valor
da romanidade na antiguidade. O romano não foi mais que um soldado no sentido
restrito da palavra, e graças às suas virtudes militares, unidas a uma feliz
concorrência de circunstâncias, pôde conquistar o mundo.
Antes de tudo, o romano alimentava a intima convicção de que Roma, seu
“Imperium” e sua “Aeternitas” eram derivadas de forças divinas. Para considerar
esta convicção romana, sob um aspecto exclusivamente “positivo”, é preciso
substituir esta crença por um mistério: mistério de como um punhado de homens,
sem nenhuma necessidade de “terra” ou “pátria”, sem estarem possuídos por
nenhum destes mitos ou paixões, que tanto atraem os modernos e com as quais
justificam a guerra e promovem acções heróicas, mas sob um estranho e
irresistível impulso, este mistério arrastava os romanos, cada vez mais longe,
de país em país, reduzindo tudo a uma “ascese de poder”. Segundo testemunhos de
todos os clássicos, os primeiros romanos eram muito religiosos – “nostri
maiores religiosissimi mortales” – mas esta religiosidade não ficava só dentro
de uma esfera abstracta e isolada, espalhava-se na prática, no mundo da acção e
por consequência, abarcava também a experiência guerreira.
Um colégio sagrado formado pelos “Festivos” presidia em Roma a um sistema bem
determinado de ritos, que serviam de contrapartida mística a qualquer guerra,
desde a sua declaração até à sua conclusão. De uma maneira geral, é certo que
um dos princípios da arte militar romana era evitar travar batalhas antes que
os signos místicos tivessem, por assim dizer, indicado o “momento”.
Com as deformações e preconceitos da educação moderna não se quererá ver nisto
mais que uma super estrutura extrínseca feita à base de superstições. Quanto
aos mais benévolos, não será mais que um fatalismo extravagante. Mas não era
nem uma coisa nem outra. A essência da arte de adivinhação praticada pelo
patriciado romano, assim como outras disciplinas análogas de carácter mais ou
menos idêntico no ciclo das grandes civilizações indo-europeias, não era descobrir
o “destino” na base de uma supersticiosa passividade. Pelo contrario, era
descobrir antecipadamente os pontos de conjugação com influências invisíveis,
para concentrar as forças dos homens e torná-las mais poderosas, de
multiplicá-las e as induzir a actuar sobre um plano superior, com o fim de
varrer - quando a concordância era perfeita - todos os obstáculos e
resistências no plano material e espiritual. É difícil pois, a partir disso,
duvidar do valor romano, a ascese romana de potência não era só na sua
contrapartida espiritual e sacra, instrumento da grandeza militar e temporal,
mas também num contacto e uma união com as forças superiores.
Se fosse este o momento, poderíamos citar numerosa documentação para
fundamentar esta tese. No entanto, nos limitaremos a recordar que a cerimónia
do triunfo tinha em Roma um carácter muito mais religioso que laico-militar, e
numerosos elementos permitem deduzir que o Romano atribuía a vitoria dos seus
“duces” mais a uma força transcendente, que se manifestava real e eficazmente
através deles, no seu heroísmo e inclusive por meio do seu sacrifício (como no
rito da “devotio” no qual os chefes se imolavam), que a suas qualidades
simplesmente humanas. Desta forma, o vencedor, revestindo as insígnias do Deus
capitolino supremo, se identificava com ele, era sua imagem, e depositava nas
mãos deste Deus, os louros da sua vitória, em homenagem ao verdadeiro vencedor.
No fundo, uma das origens da apoteose imperial, era o sentimento que debaixo da
aparência do Imperador se escondia um “numen” imortal, incontestavelmente
derivado da experiência guerreira: O “Imperatore”, originariamente era o chefe
militar aclamado sobre o campo de batalha, no momento da vitória, mas nesse
instante aparecia também como transfigurado por uma força vinda do alto,
terrível e maravilhosa que dava a impressão do “numen”. Esta concepção, por
outro lado, não é exclusivamente romana, encontra-se em toda a antiguidade
clássico-mediterrânea e não se limitava aos generais vencedores, estendia-se
aos campeões olímpicos e aos sobreviventes dos combates sangrentos do circo. Na
Helade, o mito dos Heróis confunde-se com as doutrinas místicas, como o
orfismo, e identifica o guerreiro vencedor como o iniciado, vencedor da morte.
Testemunhos precisos sobre um heroísmo e um valor que emanavam, mais ou menos
conscientemente, das vias espirituais, abençoados não só pelas conquistas
materiais e gloriosas, mas também pelo seu aspecto de evocação ritual e de
conquista espiritual.
Passemos a outros testemunhos desta tradição que, pela sua natureza, é
metafísica e, em consequência, o elemento “raça” não pode ter mais que uma
parte secundária e contingente. Dizemos isto, pois mais adiante, trataremos da
“Guerra Santa” que foi praticada no mundo guerreiro do Sacro Império Romano-Germânico.
Esta civilização apresentava-se como um ponto de confluência criadora de vários
elementos: um romano, um cristão e um nórdico.
Relativamente ao primeiro elemento, já fizemos alusão a ele no contexto que nos
interessa. O elemento cristão se manifestara sob os rasgos de um heroísmo
cavalheiresco supra nacional com as cruzadas. Resta o elemento nórdico. Com o
objectivo de que ninguém se alarme, assinalamos que se trata de um carácter
essencialmente supra-racial, portanto incapaz de valorizar ou denegrir um povo
em relação a outro. Para fazer alusão a um plano no qual nos auto excluímos, de
momento nos limitaremos a dizer que nas evocações nórdicas, mais ou menos
frenéticas que se celebram hoje em dia “ad usum delphini” na Alemanha nazi, por
surpreendente que possa parecer, se assiste a uma deformação e a uma
depreciação das autênticas tradições nórdicas tal como foram originariamente e
tal como se perpetuaram nos Príncipes que tinham por grande honra o poder de se
denominarem “romanos” ainda que sendo de raça teutónica. Pelo contrário, para
numerosos escritores “racistas” de hoje, “nórdico” não significa mais que
“anti-romano” e “romano” teria mais ou menos um significado equivalente a
“judeu”.
Dito isto, é interessante reproduzir uma significativa forma guerreira da
tradição celta: “combatei por vossa terra e aceitai a morte se for preciso:
pois a morte é uma vitória e uma libertação da alma”. Este conceito
corresponde, em nossas tradições clássicas, à expressão “mors triumphalis”.
Quanto à tradição realmente nórdica, ninguém ignora a parte do Walhalla, reino
imortal reservado, não somente aos “homens livres”, de fonte divina, mas também
aos Heróis mortos no campo de honra (Walhalla, significa literalmente “o reino
dos eleitos”). O Senhor deste lugar simbólico é Odin-Wotan conforme contado na
Ynglingasaga, como aquele que, pelo seu sacrifício simbólico na “árvore do
mundo”, havia indicado aos Heróis, um modo de esperar o divino descanso, um
lugar onde se vive eternamente sobre um cume luminoso e resplandecente, para
além das nuvens. Segundo esta tradição, nenhum sacrifício, nenhum culto era tão
grato a Deus, nem mais rico em recompensa no outro mundo, como aquele realizado
pelo guerreiro que combate e morre lutando. Ainda há mais: o exército dos heróis
mortos em combate deve reforçar a falange dos “heróis celestes” que lutam
contra o Ragna-rök, ou seja, contra o destino do “obscurecimento do divino”
que, segundo os ensinamentos, como no caso dos clássicos gregos, (Hesiodo) pesa
sobre o mundo desde as idades mais remotas.
Encontramos este tema sobre formas diferentes nas lendas medievais que
concernem à “última batalha” que livrará o Imperador jamais morto. Aqui, para
perceber o elemento universal, temos que trazer à luz a concordância de antigos
conceitos nórdicos (que, diga-se de passagem, Wagner desfigurou com o seu
romantismo empolgado, confuso e teutónico) com as antigas concepções iranianas
e persas. Alguns se surpreenderão ao saber que as famosas Walkirias não são
quem escolhe as almas dos guerreiros destinados ao Walhalla, mas sim a
personificação da parte transcendente destes guerreiros, cujo equivalente
exacto são as fravashi que na tradição irano-persa estão representadas como
mulheres de luz e virgens arrebatadas das batalhas. Personificam mais ou menos
as forças sobrenaturais em que as forças humanas dos guerreiros ”fiéis ao Deus
da Luz” podem transfigurar-se e produzir um efeito terrível e turbulento nas
acções sangrentas. A tradição iraniana continha igualmente a concepção
simbólica de uma figura divina - Mithra, concebido como o “guerreiro sem sono”
- que à frente das fravashi de seus fiéis, combate contra os emissários do deus
das trevas, até à aparição do Saoshyant, senhor de um reino futuro, de “paz
triunfal”.
Estes elementos da antiga tradição indo-europeia, repetem sempre os temas da
sacralidade da guerra e do herói que não morre realmente, senão que passa a ser
soldado de um exército místico numa luta cósmica, interferindo visivelmente com
os elementos do cristianismo: pelo menos do cristianismo que pode assumir a
divisa ”Vita est militia super terram” e reconhecer que não somente com a
humildade, caridade, esperança e outras, mas também com uma certa violência – a
afirmação heróica, aqui – é possível aceder ao “ Reino dos Céus”. É precisamente
desta convergência de temas que nasceu a concepção espiritual da “Grande
Guerra” própria da Idade Média das Cruzadas e que vamos analisar,
debruçando-nos especialmente sobre o aspecto interior individual destes
ensinamentos, sempre actuais.
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